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A cerimónia acontecia no
meio da floresta. Sob um crescente de lua brilhante que não bastava para
iluminar a noite, Hildegaard guiou o seu primo por entre as árvores como se
conhecesse o atalho de olhos fechados. Levavam dois archotes, mas apagados. Uma
exigência da cerimónia, ao que parecia. A alumiar o caminho, Hildegaard usava
apenas uma lanterna de barro. Outras luzes, no escuro da floresta, longe e
perto, informavam que mais gente se encaminhava para o mesmo sítio.
Os
cânticos provinham da clareira em frente. Ao chegar, as pessoas apagavam as
lanternas e espalhavam-se em círculo à volta dos celebrantes. Hildegaard apagou
a sua lanterna também e espetou o archote no chão.
No
centro, Eric vislumbrou pela primeira vez as figuras que cantavam. Homens e
mulheres, vestidos numa espécie de hábito azul-escuro, como monges, até no
capuz que lhes escondia as feições. Aparentemente, eles e elas na mesma função.
Padres? Sacerdotisas? Eric não sabia como lhes chamavam ali.
Também
estes se dispunham em círculo, em redor de uma grande pedra rectangular, branca
e polida, que devia servir de altar. Quando os cânticos terminaram, uma das
mulheres descobriu a cabeça grisalha e pegou na pequena candeia sobre a pedra.
Imediatamente todas as outras luzes se apagaram. Tinha começado.
A
mulher, alta e magra, escondeu nas duas mãos a pequena chama que quase morria num
último sopro azulado. Tudo ficou escuro, tudo ficou em silêncio ao frio luar.
– Esta
noite celebramos as trevas. – disse a mulher, majestosa, litúrgica, a voz forte
e grave para que chegasse a todos os presentes. – Tal como a semente germina na
escuridão, possa a nossa alma florescer nas horas mais sombrias. Esta noite
celebramos as trevas.
Esta
noite celebramos as trevas,
repetiram todos, Hildegaard com eles.
Eric
tentou não se sobressaltar, pela primeira vez pouco à vontade com o aspecto estranho
e desconhecido daquilo tudo. Quantas pessoas poderiam estar à volta daquele círculo,
e na escuridão das árvores? Cem, duzentas? Mais? O coro de vozes era
intimidante o suficiente.
– Esta é
a noite mais longa, mas amanhã o dia vence a noite. – continuou a mulher, e
abriu as mãos. A pequena chama estremeceu e reluziu mais forte, iluminando-lhe
o rosto enrugado de anciã. Erguendo os braços, a celebrante levantou a candeia
acima da cabeça. – Amanhã, o dia vence a noite!
Amanhã,
o dia vence a noite!
– Não
temamos a noite mais longa, o fim de mais um ano, mas aprendamos dela a
renascer das trevas. Esta noite celebramos as trevas e acolhemos o inverno nos
nossos corações. Tal como a terra guarda a noite da semente, recolhamo-nos
dentro de nós mesmos para frutificar mais tarde. Esta noite celebramos o
inverno.
Esta
noite celebramos o inverno.
– Nesta
noite de vigília, lembramos as trevas e esperamos o sol.
Esperamos
o sol.
Dois
homens e duas mulheres de capuz aproximaram mechas à chama que a sacerdotisa
segurava, e afastaram-se em diferentes direcções. Os outros pegaram nos sinos
também disponíveis no altar.
–
Agradecemos a terra! – exclamou a anciã, e os sinos tocaram, e à sua frente um
dos quatro celebrantes avançou até à lenha previamente disposta em círculo no
chão. Agradecemos a terra, todos repetiram, e o lume foi aceso. –
Agradecemos a água! – a mulher comandou, voltando-se para a sua esquerda, e os
sinos tocaram, e todos repetiram, e outra fogueira foi acesa à sua frente. –
Agradecemos o fogo! Agradecemos o ar!
Quando a
sacerdotisa tinha descrito uma roda completa, todas as fogueiras ardiam. Quatro
círculos de fogo como os extremos de uma cruz.
– Um
crucifixo? – Eric segredou ao ouvido da sua prima, abismado.
– Os
quatro pontos cardeais. Norte, oeste, sul, leste. – respondeu Hildegaard, e levou
o dedo aos lábios para o calar.
–
Agradecemos o inverno, – retomava a anciã – agradecemos a noite, agradecemos o
dia, agradecemos a mudança e a perenidade, o ciclo eterno. Na Grande Deusa
nascemos e morremos, morremos e renascemos, e a ela retornamos. Como a terra,
morremos, como o sol, renascemos.
Como
o sol, renascemos.
– Nesta
noite de vigília esperamos o sol, acolhemos o novo ano e agradecemos os frutos
do ano que findou.
Todos os
celebrantes tomaram nas mãos um género de facas, talvez adagas cerimoniais, e
Eric franziu o sobrolho. No que se tornou a parte mais familiar de todo o
ritual. Entre a cruz das quatro fogueiras, a mulher falava agora de agradecer o
pão, e as pessoas aproximavam-se dos celebrantes, em fila, entregando-lhes um
pão. Os sacerdotes cortavam-no ao meio e devolviam-no, como se benzido. Essa
cerimónia durou algum tempo, até a fila acabar, e depois a mulher falou de
agradecer o vinho, e logo todos os celebrantes apareceram com jarros, e
dirigiram-se a cada um dos presentes e encheram-lhes os pequenos copos que estes
tinham trazido. Surpreendido, Eric aceitou o copo que Hildegaard lhe fornecia,
prevenida, e o vinho que o sacerdote lhe serviu dentro dele.
– Prima,
isto já parece uma missa! – confessou-lhe num murmúrio.
Hildegaard
apenas sorriu, mas depois as memórias traíram-na. Tinha temido que o seu primo reagisse
chocado com o que via, que os julgasse um maligno bando de incréus, mas sim, parecia
uma missa. Parecia mesmo uma missa. E a ideia, a absurdidade de tudo aquilo,
saltou-lhe para fora num riso que não conseguiu controlar.
Todos se
voltaram para ela, homens e mulheres e celebrantes, indignados. Hildegaard
disfarçou e baixou a cabeça, tentando não rir mais. Os olhares desviaram-se
para o imperador, a má influência que fazia rir a sua prima durante um ritual
sagrado! Eric quase os podia ouvir, sem falarem. Era de todas a sua última
intenção, causar problemas à sua prima por causa da religião, ou o que quer que
aquilo fosse, e prometeu a si próprio não tornar a abrir a boca.
Felizmente,
o que a sacerdotisa fez a seguir já não lhe inspirava gracejos. Agora a mulher
falava de devolver à terra o fruto da terra, fosse isso o que fosse, e despejou
sobre o altar um odre de vinho. O líquido escorreu vermelho, escuro e denso à
luz do fogo. Eric quase adivinhou que não seria vinho o que dantes derramavam
sobre aquela pedra. Mas nem quis perguntar.
Os
celebrantes lançaram em cada fogueira um punhado de ervas, pelo cheiro um
incenso aromático, e chamas azuis subiram no ar.
– Nesta
noite de vigília celebramos as trevas! – reiterava a sacerdotisa, tal como na
igreja. – Na Grande Deusa morremos e renascemos, como esta noite morre e o sol
renasce. Celebremos as trevas antes da luz, que a luz já se aproxima!
A luz
já se aproxima!
– Levai
convosco a luz!
Tinha terminado,
ao que parecia, porque Hildegaard, e todos os presentes, pegaram nos archotes apagados
e foram acendê-los nas quatro fogueiras. As conversas e os risos regressaram,
como acontecia a seguir à missa, e tal como na igreja os conhecidos
cumprimentavam-se e trocavam beijos e abraços. Os sacerdotes e as sacerdotisas
descobriram o rosto, e depois da liturgia pareciam tão comuns como os restantes.
Eric
deixou cair o queixo de espanto ao reconhecer Etha entre eles. Fosse ela quem
fosse, a mulher sem pêlos no rosto, era importante nas Terras Verdes. Jamais
teria adivinhado.
Hildegaard
não se demorou nos cumprimentos. Eric suspeitava mesmo que o lugar dela naquele
ritual não era tão distante do círculo. Mas compreendia-se. Nessa noite
Hildegaard tinha por missão acompanhá-lo, apenas um observador. Só pela mão
dela teria presenciado o cerimonial.
Algumas
pessoas ficavam, outras começavam a ir-se embora. Com os dois archotes acesos,
Eric e Hildegaard seguiram também o seu caminho.
Desta
vez, temendo o resultado, o imperador tomou toda a cautela ao falar, já muito longe
da clareira, onde já reconhecia as imediações do castelo.
– E
agora isto parece uma procissão! – tornou a gracejar, apontando o archote.
Hildegaard
riu, e recordou o outro riso embaraçado durante a cerimónia. Conseguia rir-se
tanto e tantas vezes quando estava com ele. Seria tão difícil renunciar a esse
riso.
– Então,
deixa-me ver se compreendi. – Eric considerou, estreitando os olhos como se
precisasse de se concentrar. – É a luz do sol que levamos para casa nestes
archotes!
– Bem,
não é a luz do sol…
– É a luz
que nos lembra de que o sol regressará, para não termos medo do escuro.
Hildegaard
não chegou a responder. Outra gargalhada a impediu.
– E o
vinho simboliza os sacrifícios de sangue, quando cortavam a garganta a qualquer
desgraçado em cima daquela pedra. Confesso, por uns instantes tive medo que
esse desgraçado fosse eu.
Eric
gracejava, ou talvez não gracejasse, e já não era motivo para rir, mas
Hildegaard tinha aprendido a entender aquele sentido de humor. Nem todos o
entendiam.
– Só não
percebi quem é a Grande Deusa. – meio a brincar, Eric admitiu a sua
perplexidade. – Quem é a Grande Deusa?
Hildegaard
parou de rir, somente um sorriso lhe permanecia nos lábios, ponderando antes de
esclarecer:
– A Grande
Deusa é o teu Deus. São o mesmo, porque só há Um. Eric, todos aqui estamos
convertidos. Muitas das nossas práticas foram inspiradas nas da Igreja, e o
contrário também. Era inevitável. O antagonismo não faz sentido. Mas vai dizer
isso à tua Igreja!…
Por um
bocado, caminharam em silêncio. O castelo já se avistava ao luar quando Eric
indagou, pensativo:
– Prima,
acreditas em Deus? Nunca te perguntei porque não é importante. Mas estou
curioso.
Era
estranho, que alguém que dizia falar com os mortos demorasse tanto a responder.
Novamente Hildegaard tomou o seu tempo, e uma seriedade diferente acompanhou-lhe
as palavras.
– Não
sei no que acredito. – admitiu por fim. – Às vezes penso que somos postos no
mundo sozinhos e às escuras, de propósito para nos obrigar a encontrar o nosso
caminho.
A
resposta surpreendeu o imperador. A profundidade, na sua prima, uma
profundidade que nem sempre se adivinhava dela, porque a calava para si, porque
só cautelosamente a revelava, ainda o deixava boquiaberto. Mais encantado do
que boquiaberto.
– Sim, sem
dúvida. É melhor que encontremos o nosso caminho ou outros se apressarão em
encontrar um caminho para nós. – Eric meditou, numa profundidade mais amarga.
Os
archotes ficaram à porta. Hildegaard tinha planos para eles, mais tarde, mas
por agora não queria desencorajar o seu primo. O Solstício ainda não tinha
chegado ao fim. Havia mais, de madrugada.
–
Apetece-me beber o resto daquela aguardente que deixámos a meio. – disse ele, e
já se encaminhava para o salão.
Hildegaard
pegou-lhe no braço.
–
Estamos sozinhos. – segredou-lhe, olhos nos olhos. Não o deixaria partir sem
uma despedida. Podia ser a última vez que olhava assim aqueles olhos, azuis e
profundos. Porque quando dissesse não, o definitivo não, aqueles olhos
pertenceriam a outra mulher, qualquer outra com quem o seu primo teria de
casar, e a mera ideia a agoniava por dentro. Não suportaria partilhá-lo. Não
tinha nascido, orgulhosa e altiva, capaz de partilhar. Mas não precisava de o
partilhar ainda. A noite era longa, ainda havia tempo. – Estamos sozinhos. –
repetiu, no silêncio, e deixou que os olhos lhe dissessem tudo. O castelo era
deles, a noite era deles, o silêncio um aliado. Ninguém a ouvir, ninguém a
julgar.
Eric
compreendeu, naqueles olhos sérios que o chamavam, e seriamente, suavemente,
acariciou-lhe o rosto. Não era o que queria, e era o que mais queria. Não só
uma amante, mas tanto mais que isso. Entristecia-o, dizer adeus. Porque
perguntaria, mais tarde, perguntaria de novo, mas já tinha perguntado tantas
vezes e a resposta era sempre a mesma.
Hildegaard
aproximou-se, e o seu beijo leve espantou-lhe a tristeza. Oh, ela cheirava… A
floresta. A ramos verdes e bravios, e a ouro. Eric enlaçou-a nos braços e
deixou que os dedos lhe percorressem aqueles cabelos da cor de ouro antigo, da
cor dos seus. Demasiado próximo, o sangue que os unia? Nem lhe importaria, se o
fosse, mas o verde daqueles olhos dizia-lhe que não. Não demasiado próximo. Era
ela a mulher que amava, a mulher que desejava, a que nascera para reinar ao seu
lado. Agora Eric sabia, tinha a certeza, e os pensamentos calaram-se-lhe nos
beijos que o entonteceram. A noite era longa, podia pensar depois.
Continua...
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