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Solstício I
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Solstício I
Um nevoeiro começava a insinuar-se
por entre as árvores. Baixo e frio, como farripas de nuvem a encobrir o
caminho. Horas antes, Eric ter-se-ia preocupado, mas sabia que estava demasiado
perto para se perder na floresta. A estrada antiga tinha sido coberta de
propósito pelas gentes das Terras Verdes, mas restava ainda o vestígio de um
trilho onde as árvores eram mais novas. Já começava a conhecer o caminho de cor
e não se perderiam.
Preocupava-o
mais o frio, e suavemente estreitou a sua capa em volta do menino. Tão
habituado ao cavalo e àquelas viagens, o seu filho segurava a sela com ambas as
mãos, o queixo sobre elas, o olhar em frente. Tão forte e corajoso, aquele menino,
que nem sabia que o era. Eric sorriu, e ajeitou-lhe os cabelos loiros, tão
claros, como tinham sido os da mãe dele. Como ainda a recordava, nos traços
delicados daquele rosto, e como ainda a chorava. Dor vã, dor escusada. Melhor que
o seu filho não lembrasse que tinha tido uma mãe, bonita e doce, tão cedo
desaparecida.
A
neblina adensava-se, um manto branco e húmido que já ocultava as copas das
árvores. Eric sabia que estavam perto, mas preferiria ver o caminho, e quase
não se distinguia um palmo à frente do nariz. No silêncio invernoso da
floresta, quando já nem os pássaros chilreavam, Eric ouviu o restolhar dos
cascos de cavalos que se aproximavam por entre folhas e ramos. O menino
levantou a cabeça, como se os visse primeiro, mas Eric só os avistou quando
apenas uns metros os separavam. Três cavaleiros das Terras Verdes.
– Bem-vindo,
senhor Eric. A Hildegaard mandou-nos ao seu encontro quando o nevoeiro caiu. –
disse o que parecia ser o líder, um homem de barbicha pontiaguda e longos cabelos
escuros atados num rabo-de-cavalo. Quase todos os homens das Terras Verdes se
orgulhavam daquela barbicha, como aquele cavaleiro e o companheiro a seu lado,
mas o terceiro deles nem sequer usava barba. Eric tinha começado a reparar
nesse pormenor, como nas Terras Verdes parecia haver duas correntes de
pensamento, os que se agarravam às tradições e os que adoptavam as modas do
reino lá fora. Um pormenor que talvez viesse a ser útil. – A neblina é
traiçoeira por esta altura do ano. Siga-nos, senhor, a sua prima espera-o.
–
Obrigado. – Eric respondeu, como se nem o ofendesse que o julgassem incapaz de
se orientar, mas não era sítio nem momento para se mostrar arrogante.
Limitou-se a estreitar os olhos, como sempre fazia quando algo lhe desagradava.
Teria de aprender a disfarçar esse hábito também, mas aqueles homens não o conheciam
assim tão bem e não precisava de se esforçar muito. Com um meio-sorriso,
seguiu-os.
Tal como
tinha calculado, estavam perto. Depressa subiam pela estreita vereda na orla da
montanha que levava ao castelo da sua prima. Lá do alto, via-se o céu outra
vez. A neblina pairava sobre o vale como uma grande bacia de espuma sob o firmamento
escuro e límpido. A leste, já se anunciava uma ou outra estrela.
– Nuvens
baixas. – explicou um dos homens, como se fosse preciso. Eric nem respondeu.
O ar era
agora tão frio que doía nas narinas. Quando avistaram o castelo, a noite já se
anunciava no horizonte cinzento. Eric sorriu, sem saber exactamente porquê.
Algo lhe começava a ser familiar naquele pequeno castelo de duas torres. Até a
decadência, até o monte de ruínas em que parte de uma delas tinha colapsado
anos atrás. Seria desta vez que convenceria a sua prima a enviar-lhe os mestres
para a reparar? Dificilmente. Hildegaard era demasiado orgulhosa.
Da porta
mais pequena do castelo, pessoas começavam a sair para o receber. Eric
estranhou. Não tinha sido assim das outras vezes. Além do casal de velhos
criados que já conhecia, pelo menos mais duas mulheres esperavam à entrada. Ao
lado delas, Hildegaard sorria, a perfeita imagem da boa anfitriã. Ah, mas era
diferente desta vez, que ela até trazia um dos seus melhores vestidos! Porque o
Solstício era uma festa, uma festividade tão importante para aquela gente como
no resto do reino o era para a Igreja, embora diferente. Eric também nunca
tinha dado muita importância às festividades da Igreja, nem era o Solstício que
o trazia ali. Hildegaard sabia o que realmente o trazia, e tentava, deveras
tentava, fingi-lo um convidado.
– Prima!
– exclamou o menino, e começou logo a “desmontar”. Às vezes Eric esquecia-se da
idade do seu filho, tão precoce lhe parecia, mas o menino ainda não tinha a
completa noção da distância entre o cavalo e o solo e quase o apanhava desprevenido.
Rapidamente, agarrou-o pela roupa e desmontou também. Assim que o pousou no chão,
o menino correu como uma flecha para os braços da prima.
Hildegaard
sorria, radiante. Tomou nos braços o seu pequeno primo e rodopiou-o no ar, e
ambos riam, como se se conhecessem muito bem, como se não se tivessem
encontrado tão poucas vezes. As mulheres sorriam, os homens a cavalo sorriam,
todos sorriam encantados. Eric tinha sido totalmente esquecido. O que já não
era estranho. O seu menino tinha esse dom, essa graça de encantar a todos à sua
volta onde quer que ia, onde quer que estava.
O que
era estranho… Não, o que era auspicioso, era a afeição com que Hildegaard o
recebia. Como família, como sangue do seu sangue, que o era, mas aquele laço
tinha-se estreitado. E era tudo o que Eric mais desejava.
Um
jovem, vindo do castelo, aproximou-se e levou o cavalo. Quantos criados é que a
sua prima tinha arranjado entretanto, se não costumava ter nenhuns?
– Bem-vindo!
Entra. – Hildegaard convidou, depois de cumprimentar o visitante preferido. –
Está frio, e o nevoeiro encharcou-vos as roupas. Venham, cheguem-se à lareira.
Eric
sorriu e seguiu-a. Talvez depressa demais, talvez devessem ter observado maior
formalidade. A formalidade devida a um primo e uma prima, mas eram mais íntimos
que isso. Eric receou que se notasse, que já nem palavras eram necessárias
entre os dois. Não gostaria de manchar a honra da sua prima aos olhos daquela
gente, se é que aquela gente dava importância a essas coisas. Na verdade, Eric
ainda não percebia muito bem, mas tentou disfarçar como os olhos só lhe fugiam para
Hildegaard. Tão bonita nesse dia. Bonita para uma festa. Eric sabia que a sua
prima preferia roupas de homem, a filha do senhor das Terras Verdes que na
falta de um herdeiro a tinha educado como a um rapaz. Que a tinha tornado na guerreira
que ao lado do futuro imperador combatera de batalha em batalha. Eric nunca adivinhava
quando ia encontrar essa rapariga arrapazada de calças e cabelo apanhado, ou
aquela, a bela mulher de cabelos soltos, de um loiro tão raro que Eric admitia
só ter visto nos seus. Um loiro escuro como ouro velho, como uma herança de
família. Mas os olhos dela, verdes e claros, denunciavam o sangue que os
separava. Hildegaard dizia que tinha os olhos da sua mãe, uma senhora do clã do
Dragão, onde tais olhos de serpente eram comuns. Eric não sabia. Nunca tinha
conhecido as mulheres do clã do Dragão.
Toda a
gente entrou, não era agradável o frio lá fora, mas aqueles que Eric julgou
criados ficaram-se pela cozinha. Hildegaard levava o menino pela mão até ao
salão do castelo, onde tudo estava resplandecente. Boquiaberto, Eric parou à
porta. A primeira coisa em que os olhos lhe pousaram foi na mesa. Uma mesa de
banquete, uma mesa para trinta, coberta de comida. Havia de tudo. Bolos, doces,
mel. Frutos frescos e secos, castanhas, avelãs, nozes. Carnes e queijos e empadas.
E velas e flores, e arranjos de hera verde e bagas vermelhas e douradas de uma
ponta da mesa ao seu extremo.
Era a primeira
vez que Eric via aquele salão assim, como devia ter sido dantes. Há muito tempo
que estava sem uso, toda a mobília coberta e as cadeiras encostadas à parede.
Hildegaard tinha aberto o grande salão para ele. Até os velhos estandartes
sobre a lareira, os brasões do Unicórnio e do Dragão, tinham sido escovados e
desempoeirados, e os seus fios de ouro brilhavam como novos. Porque ele era um
convidado, porque era uma festividade. Hildegaard trazia um vestido aveludado,
de pano verde e gasto. Tão mais importante era o vestido porque ela não tinha
muitos. Dois ou três, não mais. Tal era a miséria a que a sua prima estava
remetida. Mas orgulhosamente remetida, e nada aceitaria dele.
– Prima!
Esta comida toda não pode ser só para nós! – disfarçou o espanto.
O
pequeno Eric, como se só agora reparasse, lançou a mão a um bolinho de noz à
beira da mesa e foi sentar-se a comê-lo, no tapete, frente à lareira
acolhedora.
Hildegaard
riu, os olhos verdes encobertos pelas pálpebras sorridentes.
– O teu
filho sabe tomar conta de si próprio! – elogiou.
– Estou
a ensiná-lo para isso. – Eric admitiu. Nada que Hildegaard não soubesse. Como
ele também, apenas um menino, tinha aprendido a tomar conta de si próprio. Como
tinha crescido sem ninguém, sem sequer saber que estava sozinho de tão sozinho
que estava. – Mas toda esta comida… Esperas mais convidados? Pensei que éramos
só nós dois.
– Boa
tarde! – Eric ouviu atrás dele e quase se sobressaltou. Uma mulher tinha
entrado no salão, tão silenciosa que não tinha dado por ela. Não uma mulher
qualquer, e certamente não uma criada pela confiança com que avançava por ali dentro.
Nunca a tinha visto antes. Saberia, se a tivesse visto, àquela mulher
rechonchuda, talvez de meia-idade, devido ao seu rosto. Um rosto redondo, sem
sobrancelhas, sem um único pêlo. Causava uma impressão, aquele rosto, e ao olhar
melhor Eric suspeitou que a mulher devia ser calva também, debaixo da touca
branca que lhe escondia a cabeça. O resultado de uma doença, ou um defeito de
nascença em que já se vinha ao mundo sem um único pêlo no corpo. Eric já o
tinha observado, em casos raros, e por um momento teve pena. Até que os olhos
da desconhecida se fixaram nos dele, firmes, altivos, os olhos de quem não precisava
de pena nenhuma. – Bem-vindo às Terras Verdes, Eric, filho de Elena. – a mulher
dirigiu-se-lhe, no que não era de todo um cumprimento vulgar. Mas antes que
qualquer resposta lhe ocorresse já ela se voltava para o seu filho, sorrindo
como se o conhecesse de algum lado: – Os Céus sejam louvados! É este o menino
de que ouvi falar? Mas deixa-me ver-te! Como podes ter a idade que tens? Tão
crescido que és! Sim, sais ao teu pai, e à tua mãe, pelo que ouvi dizer. Vais
ser alto como uma árvore!
O menino
sorriu, mas Eric soube, como se o seu filho lhe dissesse, que o menino tinha
notado a estranheza daquele rosto mas fingia que não reparava, e Eric
perguntou-se se não estaria a imaginar coisas. Há tanto tempo que sentia que
imaginava coisas que já nem sabia se as imaginava.
– Esta é
a Etha, uma velha amiga. – Hildegaard apresentou a mulher sem sobrancelhas que
ao seu lado cruzava os braços rotundos mais ou menos abaixo do peito. Toda a
atenção da tal Etha se voltava a fixar no imperador.
– Nunca
imaginei, em toda a minha vida, ver aqui o filho de Elena, Eric o Implacável,
filho de Eric o Gordo, o príncipe criado num mosteiro, nas Terras Verdes para
assistir ao Solstício! – a mulher continuou, agora num tom que quase roçaria o
sarcasmo. Se não fosse tudo verdade. – Diga-me, grande senhor dos reinos para
além das Terras Verdes, o que pensaria disto a sua Igreja se soubesse que aqui
se encontra no intuito de desfrutar cerimónias pagãs?
Por
aquela altura, Eric já tinha afiado a língua. Não sabia qual era o propósito
daquela estranha, mas havia história suficiente a justificar que o provocasse,
se era uma provocação. Não seria provocado, nem a velha bruxa ficaria sem
resposta.
– Li
muito sobre os vossos costumes pagãos, nesse mesmo mosteiro. Sempre quis vê-los
de perto. – e contendo um sorriso trocista olhou a mulher nos olhos, azuis ou
castanhos, era difícil de perceber, e perguntou em voz séria: – Vai haver
sacrifícios de sangue?
Etha
sorriu de orelha a orelha, divertida. Aquele era duro de roer. Quase tanto, se
não mais, do que a sua prima Hildegaard.
– Nada
melhor do que um sacrifício de sangue para apaziguar os deuses. – ripostou-lhe,
sem perder o sorriso. Os seus dentes, perlados e pequenos, não acusavam a idade
que aparentava ter. – Mas disso deve o senhor saber. Um guerreiro de tamanha reputação
não é nenhum estranho ao derramamento de sangue.
– Etha,
porque não vais ver se as lampreias estão bem temperadas? – Hildegaard
interrompeu, mas pacientemente, como se precisasse de remeter Etha ao seu
lugar. Um lugar que Eric ainda não adivinhava qual podia ser.
A mulher
baixou os olhos, admitindo que se tinha excedido, e com um aceno concordou:
–
Deixo-vos a sós, então.
Eric
franziu o sobrolho e nada disse até a ouvir bem longe. Uma amiga de Hildegaard,
talvez, mas certamente não uma amiga dele.
– A Etha
consegue ser… muito intrometida. – Hildegaard explicou, encolhendo os ombros. –
Ignora-a. Ela não mora aqui comigo. E estas pessoas que viste, vieram ajudar.
Sempre aprendi qualquer coisa contigo no teu castelo. Vieram ajudar a fazer a
comida, e a comê-la também, por isso não te preocupes, esta comida toda não é
só para nós. Quiseste vir, e ver o nosso Solstício. Eu quis mostrar-te como
era, quando eu era pequena, quando tanta gente aqui festejava. É tudo muito
diferente, agora, mas estou contente por te ver aqui.
Hildegaard
calou-se, esquecida a olhar os olhos do seu primo como se os contemplasse pela
última vez. Tinham a cor de um céu de verão ao entardecer, escuro e profundo. O
pequeno Eric não tinha os olhos tão escuros. Os olhos daquele menino eram eles
próprios o dia de verão, tépidos e luminosos, os olhos de uma mulher que Hildegaard
só tinha visto num retrato. Nem o seu primo estaria ali se essa mulher ainda
vivesse, mas estava sozinho, e tinha vindo, e Hildegaard sabia porquê.
Eric
olhou em volta, sentindo o silêncio que os rodeava. Ninguém os observava,
ninguém os ouvia. Sem que fosse precisa uma palavra, olharam-se, e caíram nos
braços um do outro. Sem que fosse preciso um pensamento, os lábios uniram-se e
beijaram-se, e beijaram-se de novo, sobrepujados pelas memórias da última vez,
e da outra vez antes dessa.
Foi
Hildegaard quem se afastou primeiro, de olhos no chão, as mãos entrelaçadas
como uma barreira a separá-los. Tonta, tonta que era. O que sentia, era
loucura. Uma última loucura, inesperada, mas apenas loucura. Talvez mais tarde,
caindo a noite, lhe pudesse dar largas. Talvez pela última vez.
Eric
sorria, mas baixava os olhos também. Não queria que Hildegaard visse neles o
brilho de vitória, a esperança que teimava em não desistir. O medo que a
esperança fosse vã. Por agora, fingiria que nada se passara. Teriam a conversa
mais tarde. Afinal, tinha vindo de tão longe para ter essa conversa. Hildegaard
sabia também, que a teriam, mas não agora.
– Se não
for demasiado incómodo, – quebrou o silêncio – seria possível arranjarem-nos um
banho quente? A viagem foi longa, e tens razão, temos as roupas encharcadas.
Nada como um banho quente para nos expulsar este frio de dentro dos ossos.
– É
claro! – Hildegaard respondeu, satisfeita com a mudança de assunto. – Pedirei
que levem água quente aos vossos aposentos. São lá em cima, como da outra vez.
Mas não se demorem. O jantar está quase pronto. Não queres que arrefeça, é uma especialidade
das nossas terras.
Disfarçando
um contrair de sobrancelhas, Eric esperou que fosse deveras uma especialidade,
e saborosa, porque lampreia não era coisa de que gostasse e não queria parecer
tão caprichoso à sua prima. O que ela sabia dos seus caprichos já bastava e
sobrava.
– Anda,
pequenino. – chamou o seu filho, como se habituara a chamá-lo. O menino já
trazia outro bolinho na mão, como se estivessem em casa.
E era
como se estivessem em casa. Eric pensou em todos os convites da nobreza que
recusara de propósito para ali estar, farto de se sentar à mesa da família dos
outros. Mais farto agora, que tinha a sua, a que estava ali, e não podia estar
melhor noutro sítio.
Lá
fora, ao olhar pela janela, a noite cerrada já tinha caído. Completa e súbita,
caía cada vez mais cedo. Nunca como naquelas últimas semanas, ao decidir
assistir ao Solstício, Eric tinha reparado tanto. Todos os dias a noite lhes ia
devorando um pouco. A noite seguinte seria a mais longa do ano.
Continua...
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