sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO II

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Solstício I





Um nevoeiro começava a insinuar-se por entre as árvores. Baixo e frio, como farripas de nuvem a encobrir o caminho. Horas antes, Eric ter-se-ia preocupado, mas sabia que estava demasiado perto para se perder na floresta. A estrada antiga tinha sido coberta de propósito pelas gentes das Terras Verdes, mas restava ainda o vestígio de um trilho onde as árvores eram mais novas. Já começava a conhecer o caminho de cor e não se perderiam.
Preocupava-o mais o frio, e suavemente estreitou a sua capa em volta do menino. Tão habituado ao cavalo e àquelas viagens, o seu filho segurava a sela com ambas as mãos, o queixo sobre elas, o olhar em frente. Tão forte e corajoso, aquele menino, que nem sabia que o era. Eric sorriu, e ajeitou-lhe os cabelos loiros, tão claros, como tinham sido os da mãe dele. Como ainda a recordava, nos traços delicados daquele rosto, e como ainda a chorava. Dor vã, dor escusada. Melhor que o seu filho não lembrasse que tinha tido uma mãe, bonita e doce, tão cedo desaparecida.
A neblina adensava-se, um manto branco e húmido que já ocultava as copas das árvores. Eric sabia que estavam perto, mas preferiria ver o caminho, e quase não se distinguia um palmo à frente do nariz. No silêncio invernoso da floresta, quando já nem os pássaros chilreavam, Eric ouviu o restolhar dos cascos de cavalos que se aproximavam por entre folhas e ramos. O menino levantou a cabeça, como se os visse primeiro, mas Eric só os avistou quando apenas uns metros os separavam. Três cavaleiros das Terras Verdes.
– Bem-vindo, senhor Eric. A Hildegaard mandou-nos ao seu encontro quando o nevoeiro caiu. – disse o que parecia ser o líder, um homem de barbicha pontiaguda e longos cabelos escuros atados num rabo-de-cavalo. Quase todos os homens das Terras Verdes se orgulhavam daquela barbicha, como aquele cavaleiro e o companheiro a seu lado, mas o terceiro deles nem sequer usava barba. Eric tinha começado a reparar nesse pormenor, como nas Terras Verdes parecia haver duas correntes de pensamento, os que se agarravam às tradições e os que adoptavam as modas do reino lá fora. Um pormenor que talvez viesse a ser útil. – A neblina é traiçoeira por esta altura do ano. Siga-nos, senhor, a sua prima espera-o.
– Obrigado. – Eric respondeu, como se nem o ofendesse que o julgassem incapaz de se orientar, mas não era sítio nem momento para se mostrar arrogante. Limitou-se a estreitar os olhos, como sempre fazia quando algo lhe desagradava. Teria de aprender a disfarçar esse hábito também, mas aqueles homens não o conheciam assim tão bem e não precisava de se esforçar muito. Com um meio-sorriso, seguiu-os.
Tal como tinha calculado, estavam perto. Depressa subiam pela estreita vereda na orla da montanha que levava ao castelo da sua prima. Lá do alto, via-se o céu outra vez. A neblina pairava sobre o vale como uma grande bacia de espuma sob o firmamento escuro e límpido. A leste, já se anunciava uma ou outra estrela.
– Nuvens baixas. – explicou um dos homens, como se fosse preciso. Eric nem respondeu.
O ar era agora tão frio que doía nas narinas. Quando avistaram o castelo, a noite já se anunciava no horizonte cinzento. Eric sorriu, sem saber exactamente porquê. Algo lhe começava a ser familiar naquele pequeno castelo de duas torres. Até a decadência, até o monte de ruínas em que parte de uma delas tinha colapsado anos atrás. Seria desta vez que convenceria a sua prima a enviar-lhe os mestres para a reparar? Dificilmente. Hildegaard era demasiado orgulhosa.
Da porta mais pequena do castelo, pessoas começavam a sair para o receber. Eric estranhou. Não tinha sido assim das outras vezes. Além do casal de velhos criados que já conhecia, pelo menos mais duas mulheres esperavam à entrada. Ao lado delas, Hildegaard sorria, a perfeita imagem da boa anfitriã. Ah, mas era diferente desta vez, que ela até trazia um dos seus melhores vestidos! Porque o Solstício era uma festa, uma festividade tão importante para aquela gente como no resto do reino o era para a Igreja, embora diferente. Eric também nunca tinha dado muita importância às festividades da Igreja, nem era o Solstício que o trazia ali. Hildegaard sabia o que realmente o trazia, e tentava, deveras tentava, fingi-lo um convidado.
– Prima! – exclamou o menino, e começou logo a “desmontar”. Às vezes Eric esquecia-se da idade do seu filho, tão precoce lhe parecia, mas o menino ainda não tinha a completa noção da distância entre o cavalo e o solo e quase o apanhava desprevenido. Rapidamente, agarrou-o pela roupa e desmontou também. Assim que o pousou no chão, o menino correu como uma flecha para os braços da prima.
Hildegaard sorria, radiante. Tomou nos braços o seu pequeno primo e rodopiou-o no ar, e ambos riam, como se se conhecessem muito bem, como se não se tivessem encontrado tão poucas vezes. As mulheres sorriam, os homens a cavalo sorriam, todos sorriam encantados. Eric tinha sido totalmente esquecido. O que já não era estranho. O seu menino tinha esse dom, essa graça de encantar a todos à sua volta onde quer que ia, onde quer que estava.
O que era estranho… Não, o que era auspicioso, era a afeição com que Hildegaard o recebia. Como família, como sangue do seu sangue, que o era, mas aquele laço tinha-se estreitado. E era tudo o que Eric mais desejava.
Um jovem, vindo do castelo, aproximou-se e levou o cavalo. Quantos criados é que a sua prima tinha arranjado entretanto, se não costumava ter nenhuns?
– Bem-vindo! Entra. – Hildegaard convidou, depois de cumprimentar o visitante preferido. – Está frio, e o nevoeiro encharcou-vos as roupas. Venham, cheguem-se à lareira.
Eric sorriu e seguiu-a. Talvez depressa demais, talvez devessem ter observado maior formalidade. A formalidade devida a um primo e uma prima, mas eram mais íntimos que isso. Eric receou que se notasse, que já nem palavras eram necessárias entre os dois. Não gostaria de manchar a honra da sua prima aos olhos daquela gente, se é que aquela gente dava importância a essas coisas. Na verdade, Eric ainda não percebia muito bem, mas tentou disfarçar como os olhos só lhe fugiam para Hildegaard. Tão bonita nesse dia. Bonita para uma festa. Eric sabia que a sua prima preferia roupas de homem, a filha do senhor das Terras Verdes que na falta de um herdeiro a tinha educado como a um rapaz. Que a tinha tornado na guerreira que ao lado do futuro imperador combatera de batalha em batalha. Eric nunca adivinhava quando ia encontrar essa rapariga arrapazada de calças e cabelo apanhado, ou aquela, a bela mulher de cabelos soltos, de um loiro tão raro que Eric admitia só ter visto nos seus. Um loiro escuro como ouro velho, como uma herança de família. Mas os olhos dela, verdes e claros, denunciavam o sangue que os separava. Hildegaard dizia que tinha os olhos da sua mãe, uma senhora do clã do Dragão, onde tais olhos de serpente eram comuns. Eric não sabia. Nunca tinha conhecido as mulheres do clã do Dragão.
Toda a gente entrou, não era agradável o frio lá fora, mas aqueles que Eric julgou criados ficaram-se pela cozinha. Hildegaard levava o menino pela mão até ao salão do castelo, onde tudo estava resplandecente. Boquiaberto, Eric parou à porta. A primeira coisa em que os olhos lhe pousaram foi na mesa. Uma mesa de banquete, uma mesa para trinta, coberta de comida. Havia de tudo. Bolos, doces, mel. Frutos frescos e secos, castanhas, avelãs, nozes. Carnes e queijos e empadas. E velas e flores, e arranjos de hera verde e bagas vermelhas e douradas de uma ponta da mesa ao seu extremo.
Era a primeira vez que Eric via aquele salão assim, como devia ter sido dantes. Há muito tempo que estava sem uso, toda a mobília coberta e as cadeiras encostadas à parede. Hildegaard tinha aberto o grande salão para ele. Até os velhos estandartes sobre a lareira, os brasões do Unicórnio e do Dragão, tinham sido escovados e desempoeirados, e os seus fios de ouro brilhavam como novos. Porque ele era um convidado, porque era uma festividade. Hildegaard trazia um vestido aveludado, de pano verde e gasto. Tão mais importante era o vestido porque ela não tinha muitos. Dois ou três, não mais. Tal era a miséria a que a sua prima estava remetida. Mas orgulhosamente remetida, e nada aceitaria dele.
– Prima! Esta comida toda não pode ser só para nós! – disfarçou o espanto.
O pequeno Eric, como se só agora reparasse, lançou a mão a um bolinho de noz à beira da mesa e foi sentar-se a comê-lo, no tapete, frente à lareira acolhedora.
Hildegaard riu, os olhos verdes encobertos pelas pálpebras sorridentes.
– O teu filho sabe tomar conta de si próprio! – elogiou.
– Estou a ensiná-lo para isso. – Eric admitiu. Nada que Hildegaard não soubesse. Como ele também, apenas um menino, tinha aprendido a tomar conta de si próprio. Como tinha crescido sem ninguém, sem sequer saber que estava sozinho de tão sozinho que estava. – Mas toda esta comida… Esperas mais convidados? Pensei que éramos só nós dois.
– Boa tarde! – Eric ouviu atrás dele e quase se sobressaltou. Uma mulher tinha entrado no salão, tão silenciosa que não tinha dado por ela. Não uma mulher qualquer, e certamente não uma criada pela confiança com que avançava por ali dentro. Nunca a tinha visto antes. Saberia, se a tivesse visto, àquela mulher rechonchuda, talvez de meia-idade, devido ao seu rosto. Um rosto redondo, sem sobrancelhas, sem um único pêlo. Causava uma impressão, aquele rosto, e ao olhar melhor Eric suspeitou que a mulher devia ser calva também, debaixo da touca branca que lhe escondia a cabeça. O resultado de uma doença, ou um defeito de nascença em que já se vinha ao mundo sem um único pêlo no corpo. Eric já o tinha observado, em casos raros, e por um momento teve pena. Até que os olhos da desconhecida se fixaram nos dele, firmes, altivos, os olhos de quem não precisava de pena nenhuma. – Bem-vindo às Terras Verdes, Eric, filho de Elena. – a mulher dirigiu-se-lhe, no que não era de todo um cumprimento vulgar. Mas antes que qualquer resposta lhe ocorresse já ela se voltava para o seu filho, sorrindo como se o conhecesse de algum lado: – Os Céus sejam louvados! É este o menino de que ouvi falar? Mas deixa-me ver-te! Como podes ter a idade que tens? Tão crescido que és! Sim, sais ao teu pai, e à tua mãe, pelo que ouvi dizer. Vais ser alto como uma árvore!
O menino sorriu, mas Eric soube, como se o seu filho lhe dissesse, que o menino tinha notado a estranheza daquele rosto mas fingia que não reparava, e Eric perguntou-se se não estaria a imaginar coisas. Há tanto tempo que sentia que imaginava coisas que já nem sabia se as imaginava.
– Esta é a Etha, uma velha amiga. – Hildegaard apresentou a mulher sem sobrancelhas que ao seu lado cruzava os braços rotundos mais ou menos abaixo do peito. Toda a atenção da tal Etha se voltava a fixar no imperador.
– Nunca imaginei, em toda a minha vida, ver aqui o filho de Elena, Eric o Implacável, filho de Eric o Gordo, o príncipe criado num mosteiro, nas Terras Verdes para assistir ao Solstício! – a mulher continuou, agora num tom que quase roçaria o sarcasmo. Se não fosse tudo verdade. – Diga-me, grande senhor dos reinos para além das Terras Verdes, o que pensaria disto a sua Igreja se soubesse que aqui se encontra no intuito de desfrutar cerimónias pagãs?
Por aquela altura, Eric já tinha afiado a língua. Não sabia qual era o propósito daquela estranha, mas havia história suficiente a justificar que o provocasse, se era uma provocação. Não seria provocado, nem a velha bruxa ficaria sem resposta.
– Li muito sobre os vossos costumes pagãos, nesse mesmo mosteiro. Sempre quis vê-los de perto. – e contendo um sorriso trocista olhou a mulher nos olhos, azuis ou castanhos, era difícil de perceber, e perguntou em voz séria: – Vai haver sacrifícios de sangue?
Etha sorriu de orelha a orelha, divertida. Aquele era duro de roer. Quase tanto, se não mais, do que a sua prima Hildegaard.
– Nada melhor do que um sacrifício de sangue para apaziguar os deuses. – ripostou-lhe, sem perder o sorriso. Os seus dentes, perlados e pequenos, não acusavam a idade que aparentava ter. – Mas disso deve o senhor saber. Um guerreiro de tamanha reputação não é nenhum estranho ao derramamento de sangue.
– Etha, porque não vais ver se as lampreias estão bem temperadas? – Hildegaard interrompeu, mas pacientemente, como se precisasse de remeter Etha ao seu lugar. Um lugar que Eric ainda não adivinhava qual podia ser.
A mulher baixou os olhos, admitindo que se tinha excedido, e com um aceno concordou:
– Deixo-vos a sós, então.
Eric franziu o sobrolho e nada disse até a ouvir bem longe. Uma amiga de Hildegaard, talvez, mas certamente não uma amiga dele.
– A Etha consegue ser… muito intrometida. – Hildegaard explicou, encolhendo os ombros. – Ignora-a. Ela não mora aqui comigo. E estas pessoas que viste, vieram ajudar. Sempre aprendi qualquer coisa contigo no teu castelo. Vieram ajudar a fazer a comida, e a comê-la também, por isso não te preocupes, esta comida toda não é só para nós. Quiseste vir, e ver o nosso Solstício. Eu quis mostrar-te como era, quando eu era pequena, quando tanta gente aqui festejava. É tudo muito diferente, agora, mas estou contente por te ver aqui.
Hildegaard calou-se, esquecida a olhar os olhos do seu primo como se os contemplasse pela última vez. Tinham a cor de um céu de verão ao entardecer, escuro e profundo. O pequeno Eric não tinha os olhos tão escuros. Os olhos daquele menino eram eles próprios o dia de verão, tépidos e luminosos, os olhos de uma mulher que Hildegaard só tinha visto num retrato. Nem o seu primo estaria ali se essa mulher ainda vivesse, mas estava sozinho, e tinha vindo, e Hildegaard sabia porquê.
Eric olhou em volta, sentindo o silêncio que os rodeava. Ninguém os observava, ninguém os ouvia. Sem que fosse precisa uma palavra, olharam-se, e caíram nos braços um do outro. Sem que fosse preciso um pensamento, os lábios uniram-se e beijaram-se, e beijaram-se de novo, sobrepujados pelas memórias da última vez, e da outra vez antes dessa.
Foi Hildegaard quem se afastou primeiro, de olhos no chão, as mãos entrelaçadas como uma barreira a separá-los. Tonta, tonta que era. O que sentia, era loucura. Uma última loucura, inesperada, mas apenas loucura. Talvez mais tarde, caindo a noite, lhe pudesse dar largas. Talvez pela última vez.
Eric sorria, mas baixava os olhos também. Não queria que Hildegaard visse neles o brilho de vitória, a esperança que teimava em não desistir. O medo que a esperança fosse vã. Por agora, fingiria que nada se passara. Teriam a conversa mais tarde. Afinal, tinha vindo de tão longe para ter essa conversa. Hildegaard sabia também, que a teriam, mas não agora.
– Se não for demasiado incómodo, – quebrou o silêncio – seria possível arranjarem-nos um banho quente? A viagem foi longa, e tens razão, temos as roupas encharcadas. Nada como um banho quente para nos expulsar este frio de dentro dos ossos.
– É claro! – Hildegaard respondeu, satisfeita com a mudança de assunto. – Pedirei que levem água quente aos vossos aposentos. São lá em cima, como da outra vez. Mas não se demorem. O jantar está quase pronto. Não queres que arrefeça, é uma especialidade das nossas terras.
Disfarçando um contrair de sobrancelhas, Eric esperou que fosse deveras uma especialidade, e saborosa, porque lampreia não era coisa de que gostasse e não queria parecer tão caprichoso à sua prima. O que ela sabia dos seus caprichos já bastava e sobrava.
– Anda, pequenino. – chamou o seu filho, como se habituara a chamá-lo. O menino já trazia outro bolinho na mão, como se estivessem em casa.
E era como se estivessem em casa. Eric pensou em todos os convites da nobreza que recusara de propósito para ali estar, farto de se sentar à mesa da família dos outros. Mais farto agora, que tinha a sua, a que estava ali, e não podia estar melhor noutro sítio.
Lá fora, ao olhar pela janela, a noite cerrada já tinha caído. Completa e súbita, caía cada vez mais cedo. Nunca como naquelas últimas semanas, ao decidir assistir ao Solstício, Eric tinha reparado tanto. Todos os dias a noite lhes ia devorando um pouco. A noite seguinte seria a mais longa do ano.




Continua...

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