sábado, 10 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO III

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O pequeno Eric comeu tudo o que havia para comer e adormeceu à mesa, a cabeça pousada sobre os bracinhos cruzados, a boca rosada e aberta, os olhos fechados que nenhuma conversa conseguiria despregar. Eric e Hildegaard viram-no adormecer e riram-se um para o outro. Alguma vez tinham dormido assim, tão profundamente, tão inocentes? Era difícil de acreditar.
Eric levantou-se e tomou o seu filho nos braços. O menino deixou tombar a cabeça, mas nem por isso acordou. Nada o acordaria agora.
– Se quiseres, posso pedir a uma das mulheres que o leve para a cama. – ofereceu Hildegaard, temendo que o seu primo não quisesse incomodar.
– Não! – explicou Eric, abanando a cabeça. – Sou eu que o deito todas as noites. Contei-te, quando a mãe dele… Bem, contei-te como ele me assustou, como rejeitou as amas, como não aceitava comida se não fosse eu a dar-lha. – e Eric sorriu, tentando espantar as más memórias. – Enquanto ele for pequenino, nada me vai roubar este encantamento. Todas as noites o ponho a dormir. É o melhor momento do meu dia. – confessou, e afastou-se, com o menino ao colo, na direcção do corredor que dava para as escadas. – Não me demoro.
Hildegaard ficou sozinha, e aproveitou para atiçar as brasas da grande lareira do salão. Há muitos anos que aquela lareira não era usada, nem saberia dizer há quantos. Tinham demorado dias a limpá-la, e à chaminé, ela e as outras mulheres e o rapaz que também pernoitava no castelo. Tinha sido um pesadelo de limpar, mas ao olhar para cima, certificando-se de que o fumo subia sem impedimentos, Hildegaard sorriu de satisfação. Aquela lareira era também uma lembrança de outros tempos. A lareira, a mobília, os pratos e os copos e os finos talheres que tinha ido desencantar a uma arca da cozinha. E os candelabros polidos e brilhantes, e os jarros e garrafas de raro vidro. Hildegaard não tinha pensado que tornariam a ter uso. Nem se daria a tanto trabalho senão pelo seu primo, que não tinha gente nem raízes. Queria mostrar-lhe o que ele merecia conhecer, o que ele tinha perdido. Só por isso valia a pena. Depressa tudo aquilo voltaria para arcas e armários, e panos toscos tornariam a cobrir mesa e cadeiras. Muito possivelmente, pela última vez.
Sem amargura, Hildegaard olhou em volta, guardando uma última memória. Talvez houvesse tristeza no leve sorriso que lhe ergueu os cantos dos lábios, mas não ressentimento. Já tinha sido decidido há muito tempo.
Aquela noite, aquele Solstício, eram apenas uma vaga lembrança do que nunca mais voltaria. O seu primo jamais saberia como tinha sido quando era pequena, quando Papá ali estava, quando Mamã ali estava. Como se sentia segura e feliz e aquela era a noite mais bonita do ano. Como os recordava tanto, nessa noite, àqueles que já não estavam presentes.
Ao ouvir os passos do seu primo, limpou uma lágrima que furtivamente lhe tinha escapado. Eric pensaria que teria sido o fumo da chaminé. Como poderia ele saber que era outra coisa? Eric não tinha aqueles mortos a chorar. Chorava outros, mas não aqueles.
– E este é o segundo melhor momento do meu dia. – Eric admitia, levantando da mesa uma garrafa cristalina e bojuda a que tirou a tampa para cheirar o conteúdo. Um aroma adocicado, não sabia do quê. Serviu-se, num pequeno copo de estanho, e provou, e desta vez os olhos semicerraram-se-lhe de prazer. – Que maravilha é esta?
– Licor de castanha. – Hildegaard revelou, e regressou ao seu lugar a um dos cantos da mesa, junto à lareira, onde ambos se tinham instalado para o jantar.
Sem largar a garrafa, Eric voltou também à sua cadeira, frente à dela. Felizmente, o menino não tinha acordado. Tinha-o deixado bem aconchegado, num dos quartos sumptuosos que Hildegaard tinha aberto para eles no andar superior. Aquela tinha sido, afinal, casa de príncipes e princesas, e reis e rainhas, em tempos tão longínquos que custava a acreditar. Eric sabia que a sua prima tinha fechado todas as alas superiores do castelo e que agora dormia num dos aposentos perto da cozinha, com os criados, por práticas questões de poupança e menos trabalho a limpar. Hildegaard já não se via a si própria como uma princesa, talvez nunca se tivesse visto como tal, há tanto tempo que aquela família tinha perdido o trono. E Hildegaard, definitivamente, não queria o trono de volta. Não queria sequer a coroa que já por duas vezes lhe oferecera. Mas não era ainda o momento para terem essa conversa de novo.
Tomando outro copo, Eric encheu-o e estendeu-lho, e ambos brindaram à luz tremeluzente das velas. Hildegaard não confessou, mas aquele era também o melhor momento do seu dia.
– Entretanto, fui incumbido de uma missão. – Eric declarou, algo a brincar.
– Uma missão? – Hildegaard repetiu, divertida.
– Deveras! Um dos meus homens anda à procura do tio. Talvez o conheças, capitão Lars? Esteve connosco em todas as batalhas?… – Eric ainda esperou uns momentos, enquanto Hildegaard se tentava lembrar. – Bem, não interessa agora. O pai dele está a morrer e parece que teve um tio que desapareceu. Um homem chamado Reid. O que eles pensam é que esse tio casou com uma mulher das Terras Verdes e que pode ter vindo morar aqui. Foi há muito tempo. A mulher era aia da minha mãe, ou algo assim. Conheces alguém chamado Reid, por aqui?
Hildegaard recostou-se para trás na cadeira, pensativa, e encavalitou uma das pernas contra o peito. Pegou no copo, bebeu outro gole, e as sobrancelhas loiras franziram-se-lhe sobre os olhos verdes.
– Não conheço ninguém por esse nome. Mas conheço uma mulher. – acenou afirmativamente. – Sim, uma mulher que acompanhou a prima Elena quando ela casou com o rei. Voltou viúva.
– Oh, pobre capitão Lars! – Eric suspirou, imaginando já as notícias que teria a levar-lhe. – Será possível falar com ela? Quero contar ao meu capitão o que foi feito desse Reid.
– É possível. – Hildegaard respondeu, mas cautelosamente, e apertou mais a perna contra o peito. Aquele não ia ser assunto de que o seu primo gostasse. – Ela mora no castelo da família da tua mãe. A única pessoa que lá mora, para dizer a verdade. Se não fosse ela, aquele castelo tinha ficado abandonado quando a prima Elena morreu. Ela era criada da família e vive lá. Podes visitá-la se quiseres.
– Pensei que o castelo estava em ruínas, quando o vi ao longe…
– O que é que não parece em ruínas, aqui? – Hildegaard contrapôs, com um encolher de ombros. Do silêncio do seu primo, sério e compenetrado a olhar o copo à sua frente, até lhe podia adivinhar os pensamentos. Eric não tinha sido amado pela mãe, nem pelo pai, e tudo o que o lembrava deles lhe arruinava o humor. – Não precisas de ir lá. Posso pedir à Etha que pergunte o que aconteceu. A Etha é intrometida, mas às vezes é útil ter uma amiga intrometida.
– Não. – Eric decidiu, levantando a cabeça. – Prometi notícias ao capitão Lars, e gostaria de as ouvir da boca da esposa do seu tio. Podemos ir amanhã?
Com um aceno hesitante, Hildegaard concordou, e voltou a encher os copos. Ninguém podia dizer que o seu primo não era corajoso. No lugar dele, de tudo o que sabia da infância infeliz que nenhuma criança teria merecido, não visitaria aquele castelo. Talvez nem visitasse aquelas terras, talvez nem visitasse aquela prima. Durante muitos anos, tinha sido exactamente o que se passara.
– Porque é que vieste, Eric? – perguntou, sem rodeios. – Porque é que quiseste aqui vir, onde vais ouvir coisas que te causam más memórias, coisas que te enraivecem…
– É isso que pensas? Que vou permitir que o passado se interponha entre mim e o futuro? As más memórias não estão aqui, prima. És tu que estás aqui. E sabes porque vim.
Então era aquele, o momento, e Eric fitava-lhe os olhos verdes que Hildegaard preferia desviar dos dele.
– Vim por ti. – Eric continuou, determinado. – Vim porque o meu tempo esgota-se. Tenho de escolher uma esposa. As famílias pretendentes sufocam-me de convites. Não posso fugir-lhes para sempre. – e pegando na mão da sua prima, insistiu, talvez pela última vez: – Porque não? Esquece o trono, esquece a coroa, casa comigo porque nos amamos. Não podes negar que nos amamos! E não compreendo, porque é que hei-de casar com uma estranha quando te encontrei a ti? Alguém que eu amo, alguém que me ama, alguém que ama o meu filho, uma princesa! E linda, e gentil, cheia de qualidades que admiro e respeito. Alguém que me compreende. Diz-me, que louco seria eu se deixasse escapar esta felicidade?… Porque não, Hildegaard, que nem queres considerar o futuro que podemos ter os dois? Tantos nobres antes de nós foram forçados a aceitar casamentos sem amor. Como podemos nós desprezar esta sorte de nos termos encontrado?
– Sorte?! – Hildegaard contestou, e finalmente enfrentou-lhe o olhar. – Devias ouvir-te a ti próprio! A Igreja vai crucificar-nos.
– A Igreja concedeu-me a autorização, por escrito. Como te prometi. O nosso parentesco não é impeditivo. E quanto ao resto do reino, ninguém achará estranho. És uma aliada, uma princesa de uma casa real…
– Oh Eric!… – Hildegaard sentou-se direita na cadeira, e abanou a cabeça. – Uma princesa arruinada, de quem já ninguém se lembra. Excepto o que dizem de nós lá fora. Excepto o que tu gostas de ignorar.
– O mundo lá fora mudou. As pessoas já não são tão ignorantes e supersticiosas que acreditem em bruxaria. Já não vivem no medo. Agora têm mais com que se entreter. Graças a mim, graças a ti, graças aos nossos aliados que puseram um fim à guerra, e agora o império prospera e enriquece…
– O mundo não mudou! – Hildegaard interrompeu, e no seu tom Eric percebeu que a conversa chegava ao fim. – Estás a ser um tolo. O melhor conselho que te posso dar é que cases com uma inimiga. É assim que se fazem alianças. Pessoas como nós não casam por amor. E eu, primo, não tenciono casar-me de todo.
Hildegaard levantou-se e terminou o resto do licor. Era o fim da conversa, e Eric quase se sentia tentado a enterrar o rosto desanimado nas mãos. Mas havia algo de diferente, desta vez. Hildegaard não tinha dito não, não tinha rejeitado o assunto tão depressa como das outras vezes. Não era o bastante para ter esperança, mas não era o bastante para a perder. Ainda tinha um dia. Não perderia a esperança antes de abandonar aquele castelo.
– Vim por ti. – concluiu, por agora. – Virei sempre por ti, porque te encontrei. Já desperdiçámos tanto tempo em equívocos, em desconfianças sem sentido. Não te vou dizer que estou aqui porque somos família. Nem sei o que isso é. Estou aqui porque somos amigos. Se te basta, bastar-me-á também.
À mesa, Hildegaard abria outra garrafa, nem suave nem adocicada. O melhor momento do seu dia. Em silêncio, encheu outro copo da essência líquida e translúcida, ardente, que tomou de um só trago. Eric levantou-se atrás dela, fingindo a perfeita desculpa naquela garrafa recém-aberta.
– Lamento. Não te queria aborrecer. – tentou fazer-se perdoar. Hildegaard não lhe parecia aborrecida, nem sequer irritada. Parecia triste, os olhos verdes mais escuros agora que se afastara do fulgor da lareira, o loiro do seu cabelo mais apagado na sombra que lhe velava o rosto. Mas bela. Como ninguém a imaginaria nas suas roupas de homem, na sua armadura de guerreira, nos seus trajes enlameados de caçadora. Hildegaard nada tinha de arrapazada, naquele gesto fluido com que enchia outro copo e lho estendia, delicadamente, docemente, como só uma mulher era capaz. O cinto largo que lhe cingia o vestido, de duro couro afivelado, nada lhe roubava à figura graciosa. Eric perguntou-se por que milagre era a sua prima ainda solteira. Mas a conversa tinha chegado ao fim, e aceitou a aguardente que engoliu sem saborear. – Obrigado por me receberes. – agradeceu, toda a sua sinceridade naquelas palavras tão sentidas. – Se não estivesse aqui não me tinha livrado dos convites, todos aqueles convites gananciosos dos que querem o imperador à sua mesa. Não fiz outra coisa nos últimos dez anos senão distribuir-me por entre eles. Por uma vez na vida, que esta festa seja para mim. Para nós.
– Não me aborreceste. Estou contente por teres vindo. – Hildegaard garantiu, e voltou-se para o olhar nos olhos, tentando mostrar um sorriso menos triste. – Espero que gostes do nosso Solstício. Começa amanhã, ao anoitecer.
Agora mais à vontade, Hildegaard preparava-se para lhe voltar a encher o copo vazio, mas Eric ergueu a mão.
– Estou mais cansado do que pensava. – admitiu, encolhendo os ombros. – A viagem foi longa, e fria. Deixa-me ir dormir antes que adormeça à mesa como o pequenino. Amanhã, depois de repousar, terei apetite para comer esta mesa inteira!
Hildegaard riu-se, e Eric riu também, mas não era um riso de vontade.
– Boa noite, prima. – o imperador despediu-se, e beijou-a na maçã do rosto, ao de leve, temendo o resultado de se aproximar mais. – Dorme bem.
Cabisbaixo, quase a acusar o desapontamento que tanto queria ocultar, Eric encaminhou-se para a larga porta em arco que abria para os corredores. Hildegaard olhou-o afastar-se e apertou na mão o copo vazio.
– Tens família. – lembrou-o. – Tens-me a mim.
Eric voltou-se para trás e as luzes da sala iluminaram-lhe os olhos e o sorriso. Era tão fácil para ela dizê-lo. Hildegaard não tinha sido órfã de pais vivos. Nem saberia o significado de tais palavras. Talvez um dia ela o convencesse de que tinha família, mas Eric sentia-se órfão ainda. Com um desmedido esforço de vontade, absteve-se de levar consigo o odre de aguardente mais à ponta da mesa.




Continua... 

 

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