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Capítulo I - primeira parte
Devia ser aquilo, o desespero, quando a morte, qualquer morte, lhe
servia de maior engodo do que a esperança.
Reena
admirava-se apenas do tom honesto naquela insistência. Como se alguma vez
pudesse recusar. Se era vontade do imperador levá-la para os seus amigos, levá-la-ia.
Porque haveria ele de mentir com benévolas promessas? A sua vida já nada valia,
nem para o homem que a tinha comprado e que a dispensava de graça. Esperaria
mesmo uma resposta, o imperador, se não havia o que responder? Reena baixou os
olhos e apertou as mãos uma na outra, e naquele instante lembrou-se de que
talvez devesse começar a rezar pela absolvição da sua alma.
Longe
de adivinhar a angústia daquele silêncio, Eric estranhava que a rapariga nada
dissesse. Seria por isso que o taberneiro se mostrava tão aberto a livrar-se
dela? Estaria ali uma imbecil, incapaz de juntar duas palavras? Ou, pelo contrário,
achar-se-ia ofendida, aquela criatura insignificante? Ambas as possibilidades
lhe desagradavam e a paciência tinha-se-lhe esgotado.
–
Bem, se não queres, ver-te-ei por aí. – encolheu os ombros, indiferente, e
virou-se para se ir embora.
Reena
levantou a cabeça, os olhos abertos de assombro. Não julgava que era uma
escolha. Ele ia-se embora? Despedia-se e ia-se embora, sem a obrigar a ir também,
porque tinha dito a verdade e não a queria levar contra a sua vontade? E se
tinha dito a verdade, não poderia haver igualmente verdade no que oferecia?
–
Sim, meu senhor, sim, eu vou. – Eric ouviu atrás de si, numa voz baixa e trémula
como se Reena já não estivesse habituada a falar com ninguém há muito tempo. Voltou-se
para ela, e viu que se tinha sentado direita, interessada. Não era nenhuma
imbecil nem se achava mais importante do que era. Sempre tinha sido uma boa
ideia, afinal. Pelo menos a rapariga não passaria privações e não dormiria na
palha como um animal, e quanto a si próprio ficaria livre daquela indisposição
desagradável que o incomodava há dias. Com um aceno de cabeça, indicou-lhe que
o seguisse.
E
se não houvesse verdade no que ele dizia, Reena hesitava, e se aquela condescendência
fosse um engodo com que a atraía à armadilha? Havia desses, também. Mas que
diferença faria, se fosse um engodo? Nem sabia se aceitava por acreditar no que
lhe era prometido, ou se na esperança de que aqueles nobres fizessem o que não
tinha coragem de fazer a si própria. Sabia somente, com absoluta certeza, que
tudo seria preferível a ficar ali. Tentou levantar-se depressa para o seguir,
como se já temesse que a deixasse para trás. Demasiado depressa. Num passo
precipitado, a perna doente falhou-lhe e caiu desastradamente sobre a palha. A
vergonha empalideceu-lhe as faces. Às vezes ainda se esquecia de que era agora
outra a sua condição, de que já não era a rapariguinha de antes que se atrevia
a correr e fugir. Contendo as lágrimas, ergueu a mão para a parede onde tinha
aprendido a apoiar-se. O que pensaria dela aquele homem, vendo a inutilidade em
que se tinha tornado? O que pensaria o senhor de qualquer casa onde fosse
oferecer o seu trabalho, se por milagre tal liberdade lhe fosse concedida?
Tentava
ainda levantar-se, esforçando-se por não parecer uma incapaz, quando o imperador
lhe pegou no braço e a pôs de pé. Reena não esperava tal auxílio de alguém tão
superior à sua posição. Mas se ele tinha agido por bondade ou impaciência, não
chegou a perceber. Antes que pudesse agradecer, Eric já se afastava pelo
corredor, e seria melhor não deduzir esperanças infundadas.
Seguiu-lhe
os passos, que nunca conseguiria acompanhar, mas entrou no salão a tempo de o
ver tirar do bolso duas moedas cintilantes que colocou sobre a mesa, frente ao
taberneiro que sempre a tinha tratado como um mau negócio. Duas moedas. Então
era isso o que valia a sua vida.
Se
mais lágrimas ameaçassem demorá-la, Reena não teve tempo de as chorar. Ao vê-la
aparecer, Eric tornou a acenar-lhe para que o seguisse, afinal cheio de pressa
como dele tinha adivinhado, e saiu porta fora com o semblante absorto de quem já
pensava noutros assuntos. Reena deitou um último olhar ao dono do
estabelecimento, até há poucos momentos o amo do seu destino. De costas
voltadas para ela, à luz de uma lamparina, este inspeccionava as moedas e
admirava-lhes a cunhagem com o brasão do Urso que representava a dinastia real.
Reena constatou que a sua pessoa já não lhe suscitava qualquer interesse e
concluiu que a transacção estava fechada. Já não era à taberna que pertencia. O
seu futuro aguardava-a lá fora, às mãos de um homem poderoso que a tinha
comprado por duas moedas, o insignificante preço da sua vida, para suprir
divertimentos, talvez, que significassem a sua morte, e nem mesmo assim
hesitava em avançar. Devia ser aquilo, o desespero, quando a morte, qualquer
morte, lhe servia de maior engodo do que a esperança.
A
noite já tinha caído. Pela primeira vez desde que chegara àquela terra, Reena
transpôs a porta da taberna e uma aragem fria e outonal soprou-lhe na cara e
agitou-lhe os cabelos. Não a achou desagradável, pelo contrário, porque lhe
provava na pele que estava realmente a abandonar aquele lugar maldito. Naquele
instante de liberdade, entontecedor, nem lhe importava para onde.
O
imperador esperava, junto à porta aberta da carruagem, e Reena olhou em volta,
confusa, à procura da carroça que a transportasse. Todos os homens da escolta
vinham a cavalo, envergando as cores do estandarte do Urso, o negro e o
vermelho-escuro, alguns segurando tochas acesas agora que precisariam delas
para alumiar a estrada. Mas não havia carroça ou coisa parecida, e subitamente
Reena temeu que lhe estivesse reservado segui-los a pé. Segui-los-ia, se
conhecesse o caminho, mas nunca tinha saído da taberna e já era noite. Temia
perder-se, e que julgassem que fugia. Atreveu-se a olhar para este ou aquele
rosto, como se pedisse instruções, e viu neles risos abafados de maliciosa
chacota. Podia não os conhecer a eles, mas eles conheciam-na a ela, e Reena
baixou a cabeça numa pontada de vergonha. Porque não falavam, porque não lhe
diziam o que queriam que fizesse ou para onde devia ir? Não eram eles quem
supostamente lhe transmitiria as ordens? De tão desorientada, ergueu os olhos
para o imperador, que não tinha nenhuma vontade de rir.
Por
esta altura Eric já se encontrava deveras impaciente, perguntando-se porque não
percebia ela que estava à espera que entrasse. Vagos, difusos pensamentos de
misericórdia devolveram-lhe a paciência. Uma pequena boa acção, que tinha de
ser concluída. Para aquela rapariga o olhar teria de ser menos duro, menos
frio, mais clemente.
Reena
viu aquele olhar e mal conseguiu acreditar que era na carruagem que devia entrar.
Em passo hesitante, atreveu-se a avançar. Nunca tinha subido a uma carruagem e
estudou o degrau de acesso abaixo da porta de madeira, e procurou onde se
agarrar. Tentou primeiro com a perna direita, a que não estava partida. Tudo
aquilo era tão difícil para ela, tão difícil. No interior, assentos forrados de
tecidos macios e bordados a flores, verdes e vermelhas, quase a detiveram. Como
era bonito, à luz das tochas. Como devia ser mais bonito à luz do sol. Era
mesmo ali que queriam que entrasse? Sempre era a morte que lhe destinavam, não
podia ser outra coisa. Reena pestanejou, como se para acordar de um sonho ou de
um pesadelo. Tomou coragem e entrou, e sentou-se ao cantinho oposto à porta.
Eric
não a seguiu logo. Voltou-se para os homens da escolta e fulminou-os com um
olhar de censura. Não o de um soberano aos seus guardas, mas o de um homem a
outros homens a quem lembrava que se metessem na vida deles. O que tinham
presenciado nessa noite era privado. Nada que não se entendesse. De sobrolho
franzido, subiu para a carruagem e fechou a porta, e os homens entreolharam-se,
esclarecidos. Parecia que a rapariga tinha encontrado um protector. Menos risos
dali para a frente.
Carruagem
e escolta partiram em direcção ao castelo. Reena não sabia a duração da viagem
e mantinha-se quieta no seu cantinho, apertando nas mãos a saia do vestido sujo
e gasto. Eric tinha-se instalado no assento em frente, o cotovelo apoiado na
janela, o queixo pousado na mão fechada. Reena nem tinha coragem de levantar a
cabeça. Que ao menos ele não olhasse, que não reparasse naquela presença
indigna de tal transporte. Não podia ser assim tão longe, aquele castelo, que
essa vergonha não tardasse a acabar.
–
O que te aconteceu à perna? – Eric perguntou, e Reena percebeu com novo choque
que aquele homem que a levava para um destino incerto também não fazia ideia do
que tinha sido a sua vida. Não importava que lhe parecesse gentil. Muitos antes
igualmente o tinham parecido, os mesmos que lhe tinham ceifado a esperança tão
cedo.
–
Eles… Eles bateram-me. Ainda dói muito. – revelou timidamente, e suportou o
olhar penetrante que lhe perscrutou os olhos.
Eric
não esperava aquela resposta. Não tinha imaginado que a perversidade tivesse
chegado tão longe no seu reino, enquanto a guerra entretinha as atenções de
quem devia fazer justiça, que uma pobre rapariga fosse espancada até lhe
partirem os ossos sem que ninguém se importasse. Reclinou-se para trás, e
voltou-se para a paisagem nocturna do arvoredo que ladeava a estrada como se não
estivesse interessado em saber mais nada.
Foi o que Reena
pensou, que não estava interessado em saber, e nada mais acrescentou. Mas o seu
olhar já não se desviou do caminho que discretamente espreitava pela janela.
Também ela reparava nas luzes das tochas, longe e perto ao longo da estrada, e à
distância nos campos. Guardas, guardas em todo o lado. Reena estava habituada a
carcereiros e aos seus chicotes, mas aqueles guardas eram um exército, cada um
envergando no cinto uma espada mais longa do que um braço. Então lembrou-se,
porque pensava ainda nessas coisas de outrora? Já não havia como fugir. Porque
lhe teimavam os pensamentos em escapar-se por essas tolas fantasias de
antigamente?