quinta-feira, 26 de abril de 2018

Nepenthos - Capítulo XVIII (excerto)

Já publicado
Capítulo I - primeira parte
Capítulo I - segunda parte
Capítulo II - primeira parte
Capítulo II - segunda parte
Capítulo III - primeira parte
Capítulo III - segunda parte
Capítulo IV (excerto)
Capítulo VII (excerto)
Capítulo VIII (excerto)
Capítulo XII (excerto)


Talvez fosse maior a tristeza ao ouvir os males que não conhecia ela própria.


Micenne ficou, e foi recebida como uma amiga. Não era uma delas, não conhecia o que elas conheciam, mas todas sabiam o que a esperava no mundo lá fora. Era já como elas, as que tinham chegado àquela casa assustadas e em lágrimas, a quem só o tempo e a amizade tinham tranquilizado.
À noite, no salão, Micenne servia bebidas aos convidados e sorria timidamente como se fosse o seu dever. Mas não o seu lugar. Reena observava, como constrangida Micenne se mantinha no seu cantinho, e ninguém a saberia doce e amável como já todos na casa a conheciam. Deslocada, receosa daqueles estranhos, não se aproximava. O tempo e a amizade tinham-na tranquilizado, talvez, mas nunca era aberto o seu sorriso.
Numa manhã fria, mas resplandecente de sol, Reena encontrou-a no jardim, sozinha, de olhar pousado nas flores de inverno que naquele clima ameno prosperavam como se fosse primavera. Teria ela encontrado também o conforto das flores? O sol rosava-lhe as faces, já menos pálidas, e brilhava-lhe nos cabelos louros, meio soltos meio entrançados em complicados padrões, como se um manto de ouro a cobrisse. Embrulhava-a um simples manto de lã, oferta de uma das raparigas, e nem por isso a sua beleza era menos majestosa. Reena aproximou-se, para lhe perguntar sobre as flores, e viu que chorava. Sem um som, sem um lamento, as lágrimas caíam-lhe pelo rosto, uma atrás da outra, pesadas e contínuas.
– Não queria que visses. – confessou Micenne, ao perceber a sua presença, e apertou mais o xaile à volta dos ombros. – Disseste-me para ter esperança, e eu quero ter esperança, mas este mundo… É um lugar tão amargo, este mundo, para tantos de nós. Às vezes preferia não ter nascido, ou que a morte me levasse, para não ter de viver neste mundo.
O desespero não largava aquele coração, já lhe tinha fincado garras profundas e afiadas, e era tão mais grave do que Reena tinha pensado. Os lábios tremeram-lhe, na falta de palavras, naquele momento em que se embrenhou naqueles olhos tão claros, e tão cheios de escuridão, e se lembrou do alívio da morte. E como era tentador, o alívio da morte, onde não haveria mais sofrimento, nem lágrimas, nem dor.
– Eu perdi a esperança, em tempos. – admitiu, e os olhos brilharam-lhe também. Estendeu a mão à dela, para a confortar, ou para partilhar um segredo. – Mas se tivesse feito o que pensei fazer não estaria aqui agora para ajudar outras como eu. Se soubesses como a minha vida era infeliz, e como mudou tanto. E se mudou para mim, mais facilmente mudará para ti.
A Micenne apenas, Reena contou o suficiente. Havia suficiente que contar sem contar muito. Micenne ouvia, em confidência, e o coração arrepiava-se-lhe. Não tinha julgado que pudesse haver pior, e já não se sentia tão abandonada pela sorte. Mas não era maior, a esperança, talvez fosse maior a tristeza ao ouvir os males que não conhecia ela própria.





Outros excertos


sábado, 7 de abril de 2018

Nepenthos - Capítulo XII (excerto)

Já publicado
Capítulo I - primeira parte
Capítulo II - primeira parte
Capítulo II - segunda parte
Capítulo III - primeira parte
Capítulo III - segunda parte
Capítulo IV (excerto)
Capítulo VII (excerto)
Capítulo VIII (excerto)

Acreditavam, ambos, ter enganado o destino



Todo o semblante do duque Alexander se tinha transformado, de choque, de íntima agitação. Os olhos, sempre tão serenos, pareciam voltar-se para o passado e vê-lo à sua frente, como tinha acontecido, como se acontecesse agora. Era um segredo, que tinha mantido por mais de vinte anos, tão doloroso que só a custo o começava a relatar. Um desgosto, o maior de todos os desgostos, que por graves razões tinha sido forçado a guardar para si. Um segredo que Eric conheceria porque precisava de conhecer.
Tinha havido um amor, tinha havido uma filha. Há tantos anos, era Alexander ainda o jovem herdeiro do ducado, tinha-se apaixonado por uma bonita serva do palácio. Um amor correspondido, puro e sincero, que não tinha olhos para a grande distância que os separava. Ambos sabiam que ele seria obrigado a contrair casamento entre a nobreza, mas mesmo assim decidiram assumir aquela união que só lhes valeria censura. A Alexander magoava muito que aos olhos do mundo a mulher que amava não passasse de uma amante, remetida à discrição que aquela relação lhes impunha, quando por sua vontade não seria outra a sua legítima esposa. Julgavam-se sensatos, ambos, e aceitaram que não podia ser de outra maneira. Alexander ofereceu-lhe uma casa na cidade, não muito longe do palácio, e jóias e fortuna e todo o conforto que o dinheiro podia comprar, para que a falta do matrimónio nunca a entristecesse. Embora sentissem, ambos, que nos seus corações era maior o laço que os unia do que as restrições que os cerceavam. Durante alguns anos foram felizes, como nunca tinham sido e não voltariam a ser. A seu tempo, a família de Alexander combinou-lhe o casamento com outra nobre herdeira, no intuito de fortalecer a aliança entre as duas casas. Em dias de guerra e prudência, Alexander acatou. A sua jovem amada, sensata que era, concordou que não havia alternativa. Planeavam ser felizes, apesar de tudo, naquela casa da cidade, longe das imposições e da falsidade que eram obrigados a consentir. Se ao menos a duquesa Agatha tivesse sido igualmente condescendente. Mas não era, e depressa começou a revelar ciúmes e pouca inclinação para tolerar aquele arranjo. Alexander não queria expor a sua amada a evitável vexame. Assim que herdou o ducado, pela morte do pai, propôs-lhe que fosse viver para um castelo da família, longe dali, onde seria senhora e nem sequer teria de ver passar a sua esposa legítima ou lembrar-se de que esta existia. Triste, a princípio, porque a distância ia impedi-los de se encontrarem tão frequentemente, a jovem preferiu guiar-se pela inteligência, aquela inteligência que Alexander tanto lhe admirava, e admitiu que seria a melhor solução. O amor que partilhavam era tão perfeito que nenhuma distância importaria. Acreditavam, ambos, ter enganado o destino, e sonhavam começar uma família, longe dali, num lar cheio de amor onde as limitações do mundo não lhes ensombrassem a alegria.
Não aconteceu logo, a partida, bastante adiada, porque se amavam e não se queriam separar, e porque entretanto ela se achava grávida e Alexander desejava muito acompanhar a chegada do seu primeiro filho. Só quando a gravidez ia já adiantada é que a jovem resolveu que seria mais acertado mudar-se para o castelo antes do nascimento da criança. Havia ainda tempo, para a viagem e para se instalar. Sem pressa, ela partiu, em segredo e na calada da noite, como escolta apenas alguns criados e guardas de confiança para que ninguém soubesse para onde iam. Embora em tempo de guerra, Alexander não estava preocupado. Mandara guarnecer o castelo como a uma fortaleza onde a sua amada e o seu filho ficariam a salvo. Não tardaria muito para que a visitasse. Era apenas um curto adeus.
Acabaria por ser a gravidez o que a atrasou. Mais cedo do que o previsto foi surpreendida pelo trabalho de parto e teve de se socorrer da estalagem mais próxima onde deu à luz uma menina. Prontamente um dos guardas, que viria a tornar-se um dos homens de maior confiança do jovem duque, cavalgou noite e dia para lhe anunciar que tinha uma filha. Foi também a última notícia que teve dela.
Assim que voltou a poder viajar, a jovem retomou caminho, com o seu séquito, mas nunca chegou ao destino. A versão oficial determinava que a comitiva tinha sido atacada por salteadores que a mataram, e a todos os criados e guardas, para roubarem as jóias preciosas que levava consigo. Não havia testemunhas do massacre.
Ao relatar esta parte, a voz de Alexander desvaneceu-se, abalada, como se tivesse sido ontem, como se não se tivessem passado mais de vinte anos, e o imperador escutava-o no silencioso respeito de quem lia naquele rosto o grande luto que fazia ainda.
O mistério começou, prosseguiu o duque, porque estavam todos mortos menos a criança. A menina, pura e simplesmente, tinha desaparecido. Louco de dor, abandonou tudo para sepultar a mulher que amava, e logo de seguida pôs-se à procura da recém-nascida, com a ajuda do seu homem leal, o único que escapara à matança porque regressara para lhe dar a notícia. O mistério adensava-se ainda mais. As jóias foram todas recuperadas sem dificuldade porque os ladrões as tinham vendido por um preço irrisório e suspeito, mas da menina não havia sinal. Durante meses, anos, Alexander esperou que lhe exigissem um resgate, mas o pedido nunca chegou. Pensou então que havia duas hipóteses: ou sabiam que a criança era sua e temiam demasiado a sua vingança para se atreverem a expor-se, ou não sabiam, e ter-se-iam meramente desfeito dela. Passaram-se anos após anos de cruel angústia, imaginando o que de pior teria acontecido à sua filha, antes de conseguir dispor-se a aceitar que a menina estaria morta, para não sofrer mais e em vão. Tinha já outros filhos, que a duquesa dera à luz, e a eles se dedicou com o mesmo amor com que teria desejado amar aquela primeira menina. Morta, de certeza, morta. Mas ainda se questionava, no segredo da sua dor, por que razão não teriam os malfeitores posto fim à criança logo ali, junto da mãe, e porque a teriam levado, se não para a venderem e tentarem obter algum lucro? Seria sequer concebível que a brutos assassinos tivesse faltado a coragem de matar uma recém-nascida? Mas admitindo essa possibilidade, por remota que parecesse, quem poderia adivinhar que aquela bebé desprotegida era filha de um duque? Bastaria envolverem-na em trapos sujos e alegarem que era órfã. Qualquer família lhes pagaria meia dúzia de trocos por uma futura serva, e assim se livravam da única prova do seu crime.
Havia ainda uma suspeita mais sinistra com que Alexander tinha aprendido a conviver, não obstante os seus escrúpulos em alimentar infundadas conjecturas. A mãe da sua filha, e os acompanhantes, viajavam como gente simples e modesta para não atraírem atenções. Ninguém sabia da sua partida, excepto se os tivessem espiado. Como é que então os salteadores tinham escolhido precisamente aquela comitiva, e porque não se tinham limitado a roubar? Porque se tinham visto na necessidade de matar a todos? Porque não tinham apenas eliminado os homens, se estes tivessem porventura oferecido demasiada resistência, e poupado as mulheres, já que era manifesto que não tinham matado a criança, pelo menos ali? Todas essas questões o atormentavam, embora não tivesse a mínima prova das suas suspeitas, mas no íntimo do seu coração sempre tinha desconfiado que aquela obra terrível tinha uma mão menos acidental, e que essa mão era a da própria duquesa.






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