terça-feira, 19 de março de 2019

Nepenthos - Capítulo XXVII (excerto)

Já publicado
Capítulo I - primeira parte
Capítulo I - segunda parte
Capítulo II - primeira parte
Capítulo II - segunda parte
Capítulo III - primeira parte
Capítulo III - segunda parte
Capítulo IV (excerto)
Capítulo VII (excerto)
Capítulo VIII (excerto)
Capítulo XII (excerto)
Capítulo XVIII (excerto)


E morreria, se o perdesse.



Chegou o dia em que Rurik abria a loja e Micenne pensou, ao entrar, que não devia ter sido assim aquele dia. Devia ter sido um dia de alegria, o dia em que se sustentaria a si própria, e ao seu filho, com o seu trabalho. Não se tinha imaginado apavorada como se prestes a receber uma sentença. Que homem era aquele, o pai do seu filho, que a assustava mais porque ninguém sabia o que esperar dele? Nem Reena e Rurik, seus antigos servos, nem o próprio duque, amigo e aliado. Que homem podia ser assim imprevisível que era como se ninguém o conhecesse?
Rurik terminava de apontar numa lista as últimas entregas e o cálculo dos preços logo à frente. Escrevia para ela, porque Rurik fazia as contas de cabeça e não precisava de as pôr no papel. Micenne não sabia se era tão fácil para ele porque era o aluno mais esperto do monge Johannes, ou se era a ela que faltava esperteza. Ainda achava tudo tão complicado, os números mais do que as letras, mas esforçar-se-ia por não o decepcionar.
– Não te preocupes se te enganares. – Rurik tentou sossegá-la. Micenne esboçou um sorriso, o melhor que conseguiu mostrar. Não eram as contas que temia, mas de nada adiantaria afligi-lo também, àquele bom amigo, a quem estava tão grata, que já ajudava tanto e não podia ajudar mais. Rurik era um homem decente, um dos poucos que mereceriam o coração generoso da sua esposa. – Eu estarei lá em cima, se precisares de alguma coisa.
Rurik subiu, pela escada dos fundos que dava acesso aos pisos superiores, e Micenne olhou em redor aquele espaço que já conhecia, o balcão para os tecidos, as prateleiras de sedas e linhos, a porta aberta para a rua. Tinha chovido muito nessa noite, e cheirava a lã e a madeira nova. A manhã, enevoada, prometia mais chuva, que não tardou. Ouviu-se um trovão, ao longe, e as nuvens desfizeram-se em água. Ninguém ia entrar por aquela porta numa manhã assim, e Micenne voltou os olhos para o seu menino, no berço atrás do balcão, dormindo tão profundamente como se estivesse em casa. E morreria, se o perdesse. Micenne soluçou, e tapou a cara com as mãos e julgou que se ia desfazer em lágrimas…
Duas senhoras, cobertas com as suas vistosas capas, a fugir da chuva, entraram a correr pela loja adentro. Culpavam-se uma à outra pela imprudência de terem saído de casa nessa manhã, com aquele tempo! Mas agora reparavam, uma loja nova, e que bonitas peças, aqueles tecidos. Quanto custava este, quanto custava aquele?... Micenne consultava a lista e sorria porque achava que devia sorrir. E havia de decorar aqueles preços todos, com o tempo. Uma sentença talvez se abatesse sobre a sua cabeça, muito em breve, mas faria o seu melhor, e agradeceria com o seu trabalho aos benfeitores que lhe tinham dado aquela oportunidade. Talvez as senhoras, gente rica, sem dúvida, comprassem alguma coisa. E enquanto trabalhava esqueceria tudo o resto.
 




Outros excertos