sábado, 17 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO X

Já publicado:
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Solstício VIII
Solstício IX






Eric já não troçava das lamparinas que enchiam o salão de luz dourada, calorosa, como uma verdadeira noite de festa. Depois de mais um longo jantar, o menino já tinha ido para a cama, exausto daquele dia cheio de passeios e novidades. À mesa, Eric e Hildegaard tinham abandonado as guloseimas para em vez disso provarem os melhores licores que nesse ano se tinham produzido naquelas terras.
O silêncio voltava a reinar no castelo e Eric olhou na direcção do corredor, um pensamento menos agradável a carregar-lhe o semblante.
– Algo me diz que costumas passar estes dias na companhia dos que te são caros. Não é verdade? Não são aquelas pessoas a tua gente, a tua família? Se eu não tivesse vindo, não estarias agora com eles, a outra mesa, mas com eles?
Hildegaard levou o licor aos lábios, e hesitou e ganhou tempo, mas só havia uma resposta:
– É verdade. E também é verdade que eles me conhecem, e que sabem que agora tenho um primo. E sabem que muito dificilmente esta ocasião se vai repetir. – e suavemente Hildegaard pegou-lhe na mão, os olhos verdes brilhando de promessa. – Esta noite é só para nós. Estamos sozinhos. Por esta altura, já foram todos para casa das famílias deles. Menos o casal de velhotes, esses estão na cama. Alguém tem de ficar aqui e tomar conta do teu filho quando formos à Vigília. Mas antes disso, conta-me o que a Melissen te disse.
Com um suspiro, Eric cruzou a perna e contou.
– Vai ser difícil explicar ao capitão Lars. – acrescentou, franzindo a testa. – Ele vai querer justiça, mas duvido que alguma justiça possa ser feita. Passou-se há trinta anos. Muitas das pessoas já nem devem ser vivas. E a nossa única testemunha, a única que pode identificar os envolvidos, jurou nunca mais abandonar as Terras Verdes. Verei o que posso fazer, e indagarei na medida do possível. Mas muitas coisas que aconteceram no tempo da guerra ficaram impunes, os senhores das terras tinham mais com que se preocupar do que fazer justiça, e acho que esta vai ser uma delas. Espero que o Lars fique contente por descobrir que teve um primo que lutou ao lado dele, mesmo sem o saber, e uma pequena prima que ainda pode vir a conhecer um dia. Quem sabe? – e Eric bebeu também do seu copo, erguendo as sobrancelhas num trejeito de incerteza. – É estranho como as coisas são. Quando a Melissen me falou do aposento que era o dela, que era o deles… Sei que aposento é esse. Era o quarto da Reena, no meu castelo. E as roupas que a Melissen deixou para trás, e que o Reid deixou para trás, foram as roupas que a Reena e o Rurik usaram quando chegaram ao castelo sem nada de seu. Por amor de Deus, não lhes contes a quem pertenceram essas roupas. A Reena, especialmente, não pode saber deste horror. Já basta tudo o que passou ela própria, tudo o que lhe destruiu a mente.
– Não vejo razão para contar. – Hildegaard concordou, mas uma sombra pousara-lhe nos olhos baixos. – Viste-a, este ano? Como te pareceu? Não a achei nada bem da última vez que a vi.
– Sim, fui a Dois Portos no verão. Achei-a melhor, menos triste. Mas agora já a conheces, prima. Menos triste é o melhor que se pode esperar dela.
Hildegaard tentou sorrir, pela sua amiga de Dois Portos, mas o sorriso morreu-lhe nos lábios. Algo de mais urgente a preocupava. Hesitante, levantou-se, e foi buscar qualquer coisa que a esperava no cimo da lareira.
– Isto é para ti. – mostrou ao seu primo, um curioso artefacto de canas suspensas por fios de linho. Hildegaard agitou-o entre os dedos. – Para o jardim do teu novo palácio em Dois Portos. Quando há brisa, faz este som encantador, escuta!
– Sim, é bonito… – Eric balbuciou, apanhado de surpresa, mas Hildegaard não lhe permitiu desfazer-se em agradecimentos por uma coisa que lhe devia parecer tão insignificante.
– Os ciganos chamam-lhe espanta-espíritos. – continuou, e a seriedade nos seus olhos avisava-o de que aquela não era uma conversa sobre adornos. – Os ciganos passam por aqui. Também não gostam muito de nós, são um povo supersticioso, mas sabem que são bem recebidos. Foram eles quem primeiro trouxe estes espanta-espíritos com eles, pendurados nas carroças. Acreditam que o barulho afasta os fantasmas. Mas os ciganos estão enganados. Os fantasmas não têm medo do barulho. Alguns, os mais bem-educados, têm a gentileza de enviar uma brisa para anunciar a sua presença, como quem bate à porta. Comigo, isto é.
Pousando o artefacto, Hildegaard encostou-se à beira da mesa, de braços cruzados e semblante compenetrado. Desta vez, o seu primo precisava de a compreender.
– Já te disse que os mortos falam comigo. Sei que não acreditas, ou que não te importas. Mas tens de me escutar, porque mais tarde ou mais cedo vai importar-te. Quando eu era pequena, muito pequena, da idade do teu filho, não distinguia os vivos dos mortos. Alguns contavam-me histórias, de belos palácios e vastos jardins onde os sinos tilintavam na brisa. Só mais tarde percebi que me falavam de outras terras, de outros tempos, do tempo deles. – e Hildegaard olhou-o nos olhos como se assim pudesse falar-lhe directamente à alma. – Quando hoje conversavas com a Melissen, o Reid veio à minha presença. Como ele era, jovem e tudo, veio pedir-me que transmita uma mensagem à sua esposa. Quer que lhe diga que não sabe como morreu. Que lhe bateram na cabeça e não tornou a acordar. Isto diz-te alguma coisa?
Por um instante, Eric calou-se no arrepio de frio que lhe percorreu a coluna de alto a baixo. Mas logo um sorriso divertido lhe tranquilizou as feições.
– Prima, estiveste a escutar à porta?
Também aquela era uma resposta, de que sim, dizia-lhe alguma coisa, e Hildegaard ignorou a troça.
– O teu filho também o viu. Hoje, no castelo, ele viu o Reid, tal como eu o vi. Na verdade, viu-o primeiro do que eu.
– O meu filho?! Estás a dizer que o meu filho vê fantasmas, um menino daquela idade? – Eric interrompeu, numa gargalhada nervosa. – Não sabes o que ele viu!
– Sei o que ele viu. – Hildegaard reiterou, sem que o seu semblante se alterasse. – Eu já desconfiava, primo, desde o primeiro instante em que pus os olhos naquele menino. Mas o dom não se manifesta de forma igual em toda a gente, e eu não tinha a certeza. Agora tenho. O teu filho tem o dom, e é disso que temos de falar. Dentro em breve ele vai começar a ver pessoas, a falar com elas, sem saber que ninguém as vê senão ele. Vai começar a usar palavras estranhas, as palavras que ouve. E um dia vais perceber que ele corre perigo. E vais ter de ser tu a protegê-lo, a ensiná-lo a calar isso que vê, quer acredites ou não, como os meus pais me ensinaram a mim. Não te sei explicar como é que ele tem o dom. Tu não o tens, a mãe dele não o tinha. É muito raro, mas não seria o primeiro caso. Talvez o tenha mesmo herdado de ti, como às vezes se herda de um avô a cor dos olhos ou dos cabelos, quando salta uma geração. Não me importa que não acredites. O que me importa é que percebas, que te prepares, porque um dia ele vai precisar da tua protecção e não lhe podes falhar!
Nos olhos dela, o tremeluzir das pequenas lamparinas faiscava como reflexos de esmeralda. Eric nunca a tinha visto tão séria, tão grave, convencida de que o menino era… Que era o quê, igual a ela? Quase a tinha interrompido, quase a tinha calado na ânsia de a contradizer. Mas agora Eric reconsiderava. Nada lhe interessava contradizê-la.
– Como queiras. Não vou discutir. Não acredito que o meu filho veja fantasmas, mas não vou discutir. O que me espanta, Hildegaard, é outra coisa. O medo, em ti. O mesmo medo que vi hoje nos olhos daquela pobre mulher. Não quero que o meu filho cresça no medo. Não quero que vivas no medo. Por favor não me digas que é o medo que te prende aqui, que também temes que nos aconteça o que aconteceu àqueles dois desgraçados…
– E achas que não é caso para ter medo?! – Hildegaard ripostou, e afastou-se da mesa. Arreliada e de costas voltadas, deu alguns passos pelo salão e parou frente ao fogo que ardia na lareira. – Sim, tenho medo de morrer numa fogueira. Sim, tenho medo pelo menino. Era isso que querias ouvir? – e zangada virou-se para ele, as faces rubras como raramente lhas tinha visto. – Quase mataram a Melissen, que nem sequer tem o dom! Eu falo com os mortos, Eric! Eu falo com os mortos! Que achas que me fariam no mundo lá fora?
– À Rainha, à minha Rainha? – Eric debruçou-se para a frente, convicto. – Queres comparar uma rainha a uma pobre criada, jovem e ingénua, sem exércitos que a protegessem? Falámos de Justiça. De como vai ser difícil fazer justiça quando a vítima nem se atreve a acusar os malfeitores. Pensa na tua gente, Hildegaard. De que maneira pode a soberana das Terras Verdes ajudar mais a sua gente, aqui exilada neste ermo, permitindo que a Igreja e aldeões supersticiosos vos apelidem de bruxas e feiticeiros, ou lá fora, em frente do reino, sentada no trono ao meu lado? Onde a violência cometida contra o povo da rainha é um insulto à própria rainha?
Por instantes, só se ouviu o crepitar do fogo. Hildegaard nunca tinha pensado nisso assim. De outras formas, mas não assim.
– Queimaram a minha bisavó na fogueira, sabes bem! – recordou-lhe.
– Ah, mas foi mesmo por ser uma bruxa? Não foi antes porque era uma conspiradora, por incitar as casas nobres umas contra as outras para poder ela reclamar a coroa? Não foi por isso que ninguém na nobreza a ajudou, e que o rei a abandonou, à Igreja e ao seu destino? Porque parece-me a mim que a tua bisavó teria sido acusada de traição se não o tivesse sido antes de bruxaria. A tua bisavó, minha tia-avó, que morreu na fogueira gritando uma maldição contra o rei e os seus descendentes, contra mim!
Arrependido, Eric calou-se. Tinha-se irritado, e Hildegaard não tinha culpa nenhuma. Nenhum dos dois tinha culpa, e se Hildegaard tinha razão ele não a tinha menos, mas de nada servia lembrar aqueles acontecimentos tão distantes.
– Duas famílias chacinaram-se uma à outra, e para quê? Não conseguiram impedir-nos de estar aqui, juntos, onde queremos estar. Já conseguimos tanto, prima, já conseguimos enterrar o passado. Imagina o que conseguiríamos juntos se decidíssemos mudar o futuro!
Hildegaard ainda meditava no que ouvira antes. Não caberia à soberana das Terras Verdes zelar pelo seu povo de outra maneira? Uma maneira diferente, agora que tudo era diferente? Era verdade o que diziam os inimigos do seu primo, nos dias da guerra, que antes de cortar-lhe a cabeça era preciso cortar-lhe a língua. Porque ele tinha deveras esse dom. Falava, e as pessoas ouviam-no.
Mas Hildegaard não cederia à tentação de o escutar. Era a si própria que devia ouvir, no silêncio da sua alma, no íntimo do seu coração. O tempo esgotava-se, mas talvez ainda restasse o suficiente. Por uma última vez, ouviria.
No silêncio, cânticos longínquos chegavam lá de fora. Não eram as cantigas alegres que de porta em porta se cantavam no Solstício. Era a grande cerimónia do meio da noite, a hora das trevas.
– É a Vigília. – Hildegaard explicou em voz baixa. – Vem. Sei que queres assistir.
Eric levantou-se, e respirou fundo.
– Desculpa se me exaltei. – implorou, os dedos tocando ao de leve o braço da sua prima, o braço forte que empunhava a espada como mulher nenhuma fazia. – O meu temperamento! O meu pior defeito!
– Não é o teu pior defeito. – Hildegaard abanou a cabeça, e conseguiu um ténue sorriso. O pior defeito, naquele homem, eram aqueles olhos azuis, profundos e honestos, que lhe desassossegavam a alma. Aqueles olhos eram perigosos, porque os amava.
Suavemente, procurou-lhe os lábios, e ao de leve beijou-os. Sim, ainda tinha de ouvir melhor aquela voz, no seu íntimo, no seu coração, que tinha conseguido calar durante tanto tempo.




Continua...

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