quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO VIII

Já publicado:
Solstício I
Solstício II
Solstício III
Solstício IV
Solstício V
Solstício VI
Solstício VII




Hildegaard tinha levado o seu pequeno primo às traseiras do castelo. Tinha havido ali um bonito jardim, em tempos, onde as senhoras nobres se sentavam à brisa de verão enquanto as crianças brincavam. Muito do jardim se tinha perdido, até Melissen regressar. Mas Melissen não regressou àquele castelo senão depois de Elena morrer. Hildegaard nunca tinha feito muitas perguntas, nem teria idade de as fazer, mas tudo indicava que a rainha Elena não se separara das suas aias nos melhores termos. Hildegaard julgava saber porquê, mas eram mais fortes as razões para não perguntar. Afinal, tudo estava esquecido.
Melissen tinha regressado àquele castelo vazio, e tinha recuperado algo do jardim e plantado uma pequena horta. Hildegaard ia na esperança de encontrar qualquer coisa com que entreter o menino, mas naquela altura do ano só havia couves. E, felizmente, algumas flores invernais. O pequeno Eric era curioso, quase tudo o interessava. Ajoelhado na terra, observava atentamente o caminho de uma minhoca como se nada de mais fascinante houvesse no mundo. Hildegaard sorria e fingia que a fascinava também. Era estranho sentir aquilo agora, quando nunca tinha feito questão de ser mãe…
Foi o pequeno Eric quem primeiro ergueu a cabeça. Hildegaard só o sentiu um instante depois. A presença, atrás deles, a muitos passos de distância. Uma forma apenas, a princípio, a forma de um homem que se tornou cada vez mais nítida. Um jovem alto, de cabelos negros, longos pelos ombros. Timidamente, o jovem sorria-lhes, mas não saía do seu sítio.
Hildegaard olhou o menino, que já inspeccionava o recém-chegado sem nada nele achar estranho. Só então acenou à figura, autorizando que se aproximasse, e o jovem sorriu mais e caminhou até eles com o peso das passadas de um homem vivo. Fingindo-se o mais vivo possível, por causa do menino.
– Deves ser o tal Reid. – Hildegaard interpelou-o, cruzando os braços no peito, um tom quase arreliado na sua voz. Mas o jovem explicou-se:
– Fui chamado. – e calou-se, ele próprio espantado a olhar o rapazinho que já nem lhe prestava atenção. Em vez disso, um carreiro de formigas começava a cativá-lo. – Ele não sabe, pois não?
– Não. Ele não distingue. – Hildegaard esclareceu. A maior parte dos fantasmas nem fazia aquelas perguntas, desorientados entre um mundo e o outro, mas não parecia ser o caso de Reid. Reid sabia muito bem onde estava, com quem estava, ao que vinha. Hildegaard sentiu a tensão abandonar-lhe o corpo. A maior parte dos fantasmas era tão maçadora. – Eu também era assim, da idade dele. Não conseguia distinguir.
Reid continuava a esforçar-se por parecer vivo, no sorriso, no brilho dos olhos. Hildegaard sabia, de alguns do outro lado, que não era fácil.
– Vim, como já deves imaginar, com uma mensagem. – o jovem confessou, quase embaraçado. O outro lado sabia que Hildegaard não gostava muito de transmitir mensagens. – Peço-te, porque a minha esposa sofre. Peço-te que lhe digas que eu também não sei como morri. Bateram-me na cabeça e não tornei a acordar. Por favor diz-lhe, por compaixão. Ela agradecer-te-á. Há tantos anos que vive na dúvida! Eu teria vindo mais cedo, mas não nos querias receber. Compreendo, e não me voltarás a ver.
– De acordo. – Hildegaard acedeu. Não gostava de fazer perguntas acerca das mensagens, seria como bisbilhotar o que não era da sua conta, mas não era difícil perceber. Reid viera porque falavam da sua morte, e algo na sua morte ainda atormentava a pobre Melissen. – Dir-lhe-ei, se isso a ajuda.
Sério, grave, Reid olhou-a nos olhos. A sua aparição quase se esbatia, tal era a intensidade das suas palavras:
– Agradeço-te. Que mil bênçãos te acompanhem.
O menino aproximou-se, rindo, e mostrou-lhes o que trazia na mão. Um caracol em forma de búzio, como nunca tinha visto. Ao chegar perto de Reid olhou para cima e procurou-lhe os olhos, quase desconfiado, quase prestes a descobrir qualquer coisa. Hildegaard nada disse ou fez, nem quando o pequeno Eric estendeu a mão para dar aquele presente ao desconhecido. Reid compreendeu a intenção e abriu a mão, e Hildegaard abriu a sua por baixo da dele, e foi ela quem apanhou o caracol quando o seu pequeno primo o pousou. O menino não percebeu, ainda tão inocente na sua ilusão.
Vozes chegavam do outro lado da torre. Eric e Melissen acabavam de sair.
– Diz adeus! – Hildegaard lembrou o menino, e este acenou enquanto Reid se afastava na direcção inversa àquela de que tinha vindo. Reid acenava também, até desaparecer atrás da esquina ao fundo, e nada ao menino parecia estranho.
Sorrindo, Hildegaard colocou no chão o minúsculo caracol, com todo o cuidado. Agora já sabia o que a atraía naquela criança, mais do que sangue, mais do que instinto, mais do que amor. Ele era como ela, e ele sabia que era como ela, e tinha-a escolhido. E aquele não era laço que pudesse ser quebrado.




Continua...

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