Solstício I
Solstício II
Solstício III
Solstício IV
Solstício V
Solstício VI
Solstício VII
Solstício VIII
Solstício IX
Solstício X
Solstício XI
Solstício XII
Desta vez os archotes iam
acesos quando pouco mais tarde subiram a colina. Eric continuava algo
espantado, ao seguir aquela gente em fila para outro sítio que não a clareira
entre as árvores. Mas ao chegar ao topo da vereda, compreendeu. A leste da
colina erguia-se a grande montanha, a majestosa barreira de onde o sol
brilharia primeiro.
No chão
pedregoso ardia uma única fogueira, quase insignificante agora que o céu de
límpido inverno já começava a ofuscá-la. Dispostos em semicírculo, os
sacerdotes e sacerdotisas cantavam, virados para leste. Toda a gente esperava,
alguns cantando também, o primeiro raiar da aurora.
Bem, o
cerimonial era interessante, e o seu filho parecia entretido. Eric olhou o
menino que lhe dava a mão, envolto na capa com capuz que Hildegaard lhe
vestira, quase como os sacerdotes da terra. Animado e curioso, como de costume,
o rapazinho observava. Demasiado pequeno para compreender, mas o nascer do sol
era sempre bonito de se ver. Podia dizer-lhe, quando regressassem…
–
Amigos! – a sacerdotisa da véspera ergueu a voz, voltada para a assembleia que
a escutava. – A noite morre e o sol renasce! Hoje, o dia vence a noite!
Hoje,
o dia vence a noite!
– Já não
tarda a primavera, agora que começa o inverno. Agradecemos o inverno, que nos
traz a primavera. Agradecemos as trevas, que nos trazem a luz. Eis que nasce a
luz e morre a noite, e a roda do ano completa-se. Grande Mãe, agradecemos a
luz!
Grande
Mãe, agradecemos a luz!
– Nela
esperamos, nela agradecemos, a Ela celebramos. Como a noite, morremos; como o
Sol, renascemos!
Como
o Sol, renascemos!
– Hoje a
vida recomeça, nova e antiga, desde o princípio dos tempos, até ao fim dos
tempos. Agradecemos a luz que nos guia, abrimos o coração à luz. Como o Sol
renascemos, e a vida começa de novo!
E a
vida começa de novo!
Atrás da
sacerdotisa, o céu clareava. Com a madrugada, a neblina chegava por cima da
montanha, raiada de azul e cor-de-rosa. O chilrear dos pássaros regressava, a
floresta desperta enchia-se de som e cor.
– Bendita
sejas, Grande Mãe! Abençoa-nos, Grande Mãe!
Abençoa-nos,
Grande Mãe!
E como
se soubesse o instante, a sacerdotisa voltou-se para o Sol, e o Sol raiou para
todos. Cânticos alegres soavam agora, e alguns rapazes e raparigas deram as
mãos e dançaram em roda da fogueira.
E ali
estava, o Sol. E ali estava, a manhã. Eric sorriu e apertou a mão do seu filho,
mas era triste aquele sorriso. E ali estava, o fim da visita. E o começo da
vida que não desejava.
Um
ancião, um homem gordo e quase careca, a quem já custava caminhar,
aproximava-se de Hildegaard com um grande sorriso nos lábios.
– Tem o
que pedi, Mestre Symm? – Hildegaard recebeu-o, entusiasmada.
– Claro
que tenho, Menina. Exactamente o que pediu! – o homem tirou algo de dentro do
casaco e Eric percebeu o que era. Um pequeno arco, uma perfeita réplica de
madeira e corda, feita por um verdadeiro mestre. Só a ponta da seta o
denunciava como brinquedo. – Veja, Menina, a minha mulher coseu-lhe uma
almofada de pano e lã, para o rapazinho não se aleijar. Que me diz?
– Está
maravilhoso, Mestre Symm! – Hildegaard exclamou, encantada, e inclinou-se para
o seu pequeno primo, que de olhos brilhantes já cobiçava o presente. – E tu, que
dizes? Gostas da prenda? É um arco e uma flecha, para aprenderes como a prima
aprendeu!
O menino
pegou no brinquedo, tão feliz e impaciente que já nem queria levantar os olhos
dele.
– Diz
obrigado. – Eric recordou-o, como nunca ninguém o tinha recordado a ele.
–
Obrigado. – repetiu o rapazinho, sem saber se para o homem se para a prima. O
brinquedo era demasiado novo e divertido para se preocupar com essas coisas.
Os
adultos riram, e o homem ofereceu:
– Também
posso fazer uma espada.
– Sim,
uma espada! – Eric concordou logo, interessadíssimo. – Traz-me destes brinquedos
e far-te-ei um homem rico.
– Não o
faço por dinheiro, meu senhor. – revelou o ancião, todo ele sorrisos. – Faço-o
pela alegria destes pequeninos. Mas diga-me quando regressa, e terei muitos
mais para o seu filho.
No rosto
de Eric, o sorriso apagou-se. Não sabia se regressaria. Daquele dia em diante a
vida recomeçava, e não era bom o que recomeçava.
– Está
tudo pronto? – Hildegaard indagou do homem, que de imediato garantiu:
– Mais
pronto não podia estar. Os meus rapazes já prepararam tudo.
– Muito
bem. Que se faça o Conselho.
Mestre
Symm despediu-se com uma ligeira vénia e Eric esperou que este se afastasse
para perguntar, confundido:
– O
Conselho? Convocaste o Conselho?
Os
primeiros raios de sol já devolviam os reflexos de ouro aos cabelos da sua
prima, e nunca aqueles olhos lhe tinham parecido tão claros, verdes e
transparentes como gotas de orvalho.
– Sim, convoquei.
– Hildegaard respondeu, com a gravidade que a ocasião exigia. – Outra das
nossas tradições a que nunca assististe. Mas é justo que assistas. O Conselho
diz-te respeito.
Eric
tinha ouvido falar do Conselho. Uma reunião de todas as pessoas importantes das
Terras Verdes, e do povo também. Uma reunião absolutamente proibida a estranhos,
como ele era um estranho. O que o espantava era ser convidado. Hildegaard podia
muito bem ter convocado o Conselho mais cedo, ou depois de ele partir. Afinal,
para que servia o Conselho? Não estava já tudo decidido?
De
propósito, foram os últimos a chegar. Na maior praça da vila, ruas de gente
esperavam-nos. Um simples estrado de madeira tinha sido erguido no chão, sem
qualquer luxo ou adorno. As gentes das Terras Verdes eram frugais. Talvez não o
tivessem sido, nos tempos em que o Unicórnio reinava, mas certamente eram-no
agora.
Hildegaard
subiu os degraus do estrado, e Eric seguiu-a, como lhe tinha sido pedido. Muito
pouco à vontade por segui-la, onde não lhe parecia que fosse o seu lugar. O silêncio,
os semblantes carregados em toda aquela gente que o fitava, diziam-lhe o mesmo.
Alta e altiva, a digna soberana das Terras Verdes voltou-se para o seu povo.
Ninguém pronunciava uma palavra.
–
Amigos, obrigada pela vossa presença. – Hildegaard começou, mais formal e
solene do que Eric alguma vez a tinha visto. Sim, aquela era a rainha que
queria ter a seu lado. A soberana que já o era. Mas não estava já tudo
decidido, que tal nunca aconteceria? – Todos sabeis o que nos traz aqui hoje. A
minha mão foi pedida e o vosso conselho é necessário.
–
Hildegaard, – ouviu-se a voz que Eric logo reconheceu, a voz da sacerdotisa, a
celebrante dos rituais, algures de entre a multidão – perdoa-me, mas ele não
devia estar aqui. Este é o Conselho das Terras Verdes, reservado apenas à gente
das Terras Verdes.
–
Deveras! – apoiou outro homem, junto dos sacerdotes, mas não um deles. – O
imperador, com o devido respeito, não devia estar aqui!
– Não
devia estar aqui! – começou um burburinho na praça, uns concordando, outros mandando
calar os primeiros.
Eric, alguns
passos atrás da sua prima, com o filho nos braços, não gostou do aspecto que as
coisas levavam. E aquela gente tinha razão, não era o seu lugar, e o melhor era
ir-se embora…
– Perdoai-me
vós, – Hildegaard ergueu a voz acima da deles, e o burburinho cessou – mas o
meu primo tem todo o direito de aqui estar. O mesmo direito que qualquer um de
nós. Ele é filho de Elena, da casa do Unicórnio, filha das Terras Verdes. Se
ele hoje é um estranho, não é a ele que deveis culpar. – Hildegaard já os tinha
calado a todos, mas de sobrolho franzido continuou: – O meu primo veio aqui
como um amigo, para conhecer os nossos costumes, respeitando as nossas
tradições. Devemos-lhe o mesmo respeito. Apesar de tudo, bem sei, apesar de
tudo! Nada pode desfazer o passado, e estamos aqui para deliberar o futuro.
Novo burburinho
percorreu os presentes. A presença do imperador já parecia ultrapassada, mas o
motivo do Conselho só agora começava a ser discutido.
–
Aconselho contra esta união. – a sacerdotisa falou outra vez, séria e
indignada. Eric não gostou nada de a ouvir, mas admirou-lhe a coragem. Se todos
os seus inimigos fossem assim tão honestos talvez não fossem inimigos. – O
nosso lugar é aqui, nas Terras Verdes, onde não somos perseguidos, onde somos
livres de ser quem somos. Hildegaard, que loucura te acomete? Sabes o que nos
espera lá fora. Nem devia ser necessário o Conselho para te alertar do que tão
bem conheces.
– Mulher
egoísta! – acusou uma voz, antes que Hildegaard pudesse responder. Uma voz que
Eric conhecia também. Etha, do outro lado da multidão, ainda nas suas vestes
sacerdotais. – O que espera a Hildegaard lá fora!… E o que espera a Hildegaard
cá dentro, uma vida de solidão e renúncia? É isto que desejamos à nossa
soberana, cuja mão foi pedida por outro soberano? Devemos adverti-la que
recuse, que abdique do seu coração, para nos servir? Devemos exigir-lhe que se
torne uma monja, como aquelas nos conventos lá fora?
– Não! A
Hildegaard deve ouvir o seu coração! – respondeu uma jovem, loira e bonita, que
Eric só conhecia por ser a filha do único taberneiro das Terras Verdes. O
taberneiro seu pai, ao lado dela, não concordava nada com a filha.
– A voz
da juventude! – desdenhou este, virando-se para os outros presentes. – A voz de
quem não conhece o mundo, e os horrores que lá se praticam.
– Ele tem
razão! – aplaudiu uma mulher mais velha. – Devemos abrir as nossas portas ao
mundo, aceitar que nos persigam na nossa terra também?
–
Devemos então fechar-nos, até que já não reste ninguém para perseguir, quando
todos nós desaparecermos de vez? – contrapôs Etha.
Aquela
era uma aliada com que Eric não contava, mas a discussão começava a ficar acesa
e não queria o seu filho a ouvir aquelas coisas. Fingindo que brincava com o
arco, o menino permanecia sério e de olhos baixos, pouco habituado à discórdia.
Eric não o queria proteger de tudo, seria um erro protegê-lo de tudo, mas por
hoje já chegava. Pousou-o no chão, com a promessa segredada:
– O pai
já vem!
E o
imperador aproximou-se da sua prima, que silenciosa e de expressão fechada continuava
a ouvi-los, como se quisesse esperar até os ouvir a todos.
– Posso
falar? – perguntou-lhe. Com um espantado encolher de ombros, Hildegaard deixou
que o debate respondesse por ela, que não deviam estar na disposição de escutar
um homem que na opinião deles representava o inimigo. Mas Eric não se deixou
intimidar. – Posso falar?! – perguntou mais alto, à assembleia. – Sei que não é
o meu lugar, mas posso falar?
Um a um,
os presentes calaram-se e voltaram-se para o fitar, de olhos arregalados, como
se acabasse de proferir uma afronta. Que assistisse ao Conselho era já uma
transgressão, falar era inconcebível! Mas Eric não se importou. Parecia-lhe bem
que aquela era a batalha que decidiria o seu futuro com a mulher que amava, e
não sairia dali sem lutar por ela.
–
Compreendo-vos! – aproveitou o silêncio. – Sei o suficiente para compreender os
vossos receios. Perguntai à minha prima, ela dir-vos-á. Pessoalmente, não me
incomoda nada. Nunca me incomodou. A vossa Deusa, o vosso dom, os vossos
fantasmas, que seja! Nada disso é relevante para mim e para os meus planos. Tendes
razão, não sou um de vós. Não conheço na pele o que vós conheceis, e deveis
pensar que falo sem saber. Admito que sim, mas digo-vos isto: há muito tempo
que penso, desde que vos conheço que penso assim, que o vosso isolamento vos é
prejudicial. As pessoas temem o que não conhecem, e os vossos segredos não vos
ajudam. Não digo que não vos tenha protegido no passado, concedo-vos essa
sabedoria, mas não falo do passado. Falo do presente, e as coisas estão a mudar
no mundo lá fora. Nunca como agora foi altura de agarrar essa mudança para
vosso benefício. As pessoas temem-vos, é por isso que vos perseguem. Seguramente
não vos estou a dar uma novidade! Quando as pessoas vos conhecerem deixarão de
vos temer. Mas para isso é preciso que vos deis a conhecer. É este o meu
conselho.
Eric
calou-se, por um momento, e estudou a audiência. Ouviam. Até a sacerdotisa e o
taberneiro, ouviam. Não os convencia, nem tal esperava conseguir, mas era já
uma vitória. Bem, quase uma vitória. Alguém o ouvia também, alguém que o olhava
de olhos incandescentes, de uma das pontas mais afastadas da multidão. Alguém
que o acusava de não ter compreendido nada. Melissen, zangada, voltou as costas
e abandonou o Conselho. Eric viu-a ir, e compreendeu a mágoa e o medo. Jamais
as suas palavras ecoariam àqueles ouvidos. Mas ainda podiam ecoar a outros.
– Não
estou aqui para abrir as vossas portas ao mundo lá fora. – continuou, para a
sacerdotisa, para o taberneiro, para todos os que viam nele uma ameaça. – Não
foi esse o meu acordo com as Terras Verdes, convosco, que conto como aliados
desde o fim da guerra. Foi o acordo, e jamais vos pediria o contrário da minha
palavra dada, nem tal me passa pela cabeça. Deixo apenas o meu conselho, que
sejais vós a descobrir o mundo lá fora, e como mudou desde que o conhecestes.
Mas aconselho cautela. A mesma cautela que aconselhais à minha prima. Sei o que
temeis e sei que tendes motivos para temer. Mas não a mim. Não estou aqui para
perturbar o vosso refúgio. Sabe Deus que todos precisamos de um refúgio de vez
em quando! Era o que vos queria dizer, e agradeço por me ouvirdes. Percebo que
o meu lugar não é aqui, apesar da generosidade da minha prima que me convidou
como se não fosse um estranho. Sei que o sou, e respeitarei as vossas tradições
como espero que respeitem as minhas. Deixo-vos, agora, ao vosso Conselho. Um
bom dia para todos, ou um bom Solstício, seja como for que se diz aqui!
Terminando,
Eric tornou a estudar a audiência. Não era uma vitória, mas era qualquer coisa.
Era o melhor que se podia conseguir. Tudo o resto lhe escapava das mãos.
Dignamente,
o imperador pegou no seu filho e desceu os degraus. As ruas de gente abriram-se
para o deixar passar, e um silêncio desorientado encheu a praça.
Hildegaard
esperou, como se ao longe ainda soubesse onde ele ia, e só falou quando o seu
primo já não a podia ouvir.
– E
agora ele ficou a pensar que convoquei este Conselho para vos pedir permissão!
– explicou, com um sorriso travesso, e cruzou os braços no peito. – Não era
disso que tratava este Conselho, mas o meu primo tem razão. Visitei o reino,
recentemente, e vi mudança. Não a suficiente, mas vi.
– Não a suficiente,
– Etha interrompeu, enérgica, para a multidão – mas é a primeira vez em muitos
anos que as Terras Verdes têm um amigo. Um amigo que zela pelos nossos
interesses, que zelará muito mais se os nossos interesses forem os dele!
–
Basta, Etha! Já toda a gente percebeu onde queres chegar. – Hildegaard ralhou.
Às vezes, por muito que gostasse daquela amiga, Etha conseguia arreliá-la. – Mas
também a Etha tem razão, e isso deve pesar na vossa decisão. Gente das Terras
Verdes, não estou aqui para vos pedir permissão. Lembro-me, como se fosse hoje,
do dia em que neste Conselho me escolhestes como vossa soberana. Agradeço a
vossa confiança e sempre farei tudo para merecer essa honra. Os argumentos
foram debatidos. Todos falaram. Até o meu primo falou! Todos sabemos o que está
em causa. – e Hildegaard olhou a todos, de um lado ao outro da praça. – A vossa
decisão pesará na minha, como sempre pesou. Pergunto-vos, aqui e hoje: se a
minha decisão for aceitar o pedido do meu primo, devemos eleger outro soberano
nas Terras Verdes? Há muito tempo que o Unicórnio é senhor nestes domínios. Mas
tudo muda, a vida é mudança. De tudo abdicarei se for o melhor para as Terras
Verdes. Sabei isto, sabei sempre isto. O meu compromisso é convosco, sempre convosco.
E agora, vamos votar.
Continua...