domingo, 11 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO IV

Já publicado:
Solstício II
Solstício III





Há muitas noites que o céu não estava tão límpido. Da janela envidraçada à maneira antiga, Hildegaard conseguia contemplar todas as estrelas que por aquela altura do ano se alinhavam na mesma disposição desde há milénios. As mesmas estrelas, guiando novos viajantes, brancas e frias no firmamento infinito.
Ainda bem que o tempo tinha mudado. Nem nuvens nem chuva entristeceriam as celebrações da noite seguinte. Hildegaard apertou mais o manto de lã em torno dos ombros e levou aos lábios o odre de aguardente que trouxera da sala. As lareiras já se tinham extinguido. Apenas o luar de um crescente luminoso, quase lua cheia, iluminava o corredor onde tinha parado à janela.
– Que faz aqui, menina? – perguntou Etha, do recanto escuro à entrada. – Sozinha, a beber, a estas horas da noite. Devia estar lá em cima, onde deseja estar, na cama do homem que ama. É o que fazem as mulheres apaixonadas, murmurar doces promessas ao ouvido dos seus amantes.
– Oh, Etha! – Hildegaard censurou-a, sem convicção. Como Etha gostava de a arreliar, com aquele sorriso travesso e os braços cruzados no peito, como se fosse ainda uma ama a dar lições. – Sabes que perderia o meu tempo a murmurar doces promessas aos ouvidos do meu primo. Não me parece que goste dessas tolices. Seja como for, vai ser a outra mulher que caberá dizer-lhas. Não a mim.
– Porque não? – Etha repetiu as palavras do imperador, como se as tivesse ouvido, como se as tivesse adivinhado, e desta vez Hildegaard franziu as sobrancelhas, espantada.
– Pensei que não aprovavas. – interrogou-a. – Pensei que não gostavas dele.
– Menina, menina! É de si que eu gosto. – Etha explicou, e avançou para o luar que lhe embranquecia as estranhas feições. – É a si que quero ver feliz, e a menina não é feliz. Esvaziou a sua vida, Hildegaard. Está sozinha, demasiado sozinha. Por causa destas terras, por causa do mundo lá fora, por causa do seu orgulho. Não interessa agora. Esvaziou a sua vida e está sozinha, e não precisa de se sacrificar desta maneira. Já sacrificou o que havia a sacrificar. O tempo chegou em que mais nenhum sacrifício é necessário porque a nossa gente está a desaparecer. Sabe tão bem como eu, Hildegaard, estamos condenados de tão poucos que somos. A sua valentia defendeu-nos, a sensatez do seu pai protegeu-nos, mas quase nada resta a proteger. Oh, sabe tão bem como eu!
Hildegaard não respondeu. Já tinham tido aquela conversa muitas vezes. Durante décadas, as Terras Verdes tinham-se mantido proscritas, aos outros e pelos outros, mas na falta de gente também as Terras Verdes seriam engolidas pelo reino, diluídas no tempo, esquecidas em névoa. Hildegaard podia muito bem ser a última soberana daqueles escassos súbditos.
Estendendo a mão, Etha pediu-lhe a aguardente, e sem pressa tomou um gole como se aquecesse a garganta para continuar:
– Aquele homem, lá em cima, é o que é, mas veio aqui segundo as nossas regras, obedecendo aos nossos costumes. Só uma coisa faz um homem mudar de pele, Hildegaard. E já toda a gente sabe que ao imperador só interessa uma coisa nestas terras: um par de olhos verdes. É por si que ele vem, Hildegaard. É a si que ele quer, como esposa, como rainha. E sei que começa a apaixonar-se…
– Que já estou apaixonada. – Hildegaard corrigiu, e recuperou a aguardente.
– Pela ideia. Começa a apaixonar-se pela ideia. – esclareceu Etha, e fitou-lhe os olhos verdes, apanhados de surpresa. ­– Começa a pensar, sozinha, a estas horas da noite, como seria a sua vida ao lado dele, no reino lá fora. É isso que faz aqui, menina, não é outra coisa.
Hildegaard pestanejou, como se quisesse negar, como se quisesse abrir a boca e desfiar todas as razões com que tinha recusado o seu primo desde a primeira vez. E seria mentira. E Etha saberia que seria mentira. Era outra, a verdade.
– A minha liberdade. Perderei a minha liberdade. – admitiu, de olhos baixos, para logo os erguer, orgulhosa, para a paisagem nocturna do luar que iluminava a montanha.
Por um momento, Etha nada disse. Ponderava aquela verdade, talvez já a suspeitasse, e foi em tom misterioso que respondeu:
– Há liberdade e há liberdade. Os mortos são livres e de bom grado trocariam a liberdade por uma vida.
– Os mortos são uns tolos que já não se lembram de estar vivos!
– Poderá ser, mas os mortos preferem uma vida, mesmo má, a vida nenhuma. Mas a menina tem uma vida e está a desperdiçá-la. É assim tão importante, a sua liberdade, que despreze a sua vida, o seu futuro, os seus desejos legítimos, que transforme a sua liberdade na solidão em que esvaziou a sua vida? Pense bem, Hildegaard, seja o que for que decidir. Ele não vai esperar para sempre. Não é por nada que lhe chamam o Implacável. Mas a menina travou-o. É por si que ele espera, um homem habituado a conseguir tudo o que quer. Pense bem. Pense em como ele a quer tanto. Não se arrependa depois, quando for demasiado tarde! – arrebatada pelo seu discurso, Etha respirou fundo e calou-se. Nada mais podia dizer. Apenas diria o que tinha de ser dito.
– Preocupa-me o menino. – Hildegaard deixou escapar, como se pedisse aprovação. – O menino tem o dom, o pai não sabe lidar com o dom. Um dia…
– Não, Hildegaard, que não seja essa a razão. – Etha interpôs, aproximando-se um passo. – O menino tê-la-á sempre, ter-nos-á sempre quando precisar de nós. Pense antes em si. Pense no que deseja, no que poderá ser o futuro. Pense na sua felicidade, menina. Há tanto tempo que a ignora!
O silêncio ficou, a seguir às palavras de Etha, como uma presença naquele corredor. Hildegaard bebeu do seu odre e saboreou a bebida, ardente como fogo. Lá fora, a montanha quieta, familiar e majestosa, gelada nas suas penedias agrestes, parecia fazer-lhe a mesma pergunta. Partir? Abandonar aquela montanha, o seu lar, por outro lar desconhecido? Um lar feito de outra rocha, tão fácil de fender e partir? Tão subtilmente a cobardia se disfarçava de sensatez que Hildegaard já temia confundir a ambas. Se ao menos não tivesse de decidir, se ao menos tudo pudesse permanecer assim para sempre, petrificado naquela véspera de Solstício.
– Devemos convocar o Conselho. – deliberou, e voltou-se para Etha. Nunca Etha a tinha olhado tão seriamente, tão gravemente. Há tantos anos que o Conselho não era convocado, desde que Hildegaard tinha sido aclamada. – Depois de amanhã, a seguir ao Solstício. Quero ouvir a nossa gente.




Continua...  

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