Capítulo I - primeira parte
Capítulo II - primeira parte
Capítulo II - segunda parte
Capítulo III - primeira parte
Capítulo II - segunda parte
Capítulo III - primeira parte
Aquela era a sua única, a sua
última oportunidade.
Durante
dias, Reena sentiu-se como alguém errando num sonho, incompreensível, interminável,
em que todas as noites adormecia e todas as manhãs acordava na perplexidade de
que nada lhe tinha acontecido. Observava os criados, atentamente, pela verdade.
Ensinava-lhe a experiência que se a aguardassem os terrores que suspeitava,
eles saberiam. Mas nada lhes via que tal revelasse. Pelo contrário, não
escondiam a indignação por terem de suportar aquela criatura ignóbil debaixo do
mesmo tecto, convencidos de que ela tinha chegado para ficar. Para ficar,
pensava Reena, e animava-se. Se terrores havia, não se passavam dentro daquelas
paredes. Os criados, pelo menos, nem os imaginavam. Preocupavam-nos apenas as
faltas na despensa, a lenha bastante no fogão, a roupa suja a separar para as
lavadeiras. O castelo tinha uma rotina sossegada, nem se diria a morada de tão
importante soberano. Reena ouvia, em pedaços de conversas, que nem sempre era
assim, que Eric detestava visitas e que o seu feitio piorava nessas alturas,
irascível e exigente. Felizmente, ausentava-se por longas temporadas. Mas quando
estava em casa não era amo fácil de satisfazer, e que Reena não pensasse, por
ser incumbida das tarefas de pouca importância, que se podia dar ao luxo de ser
negligente. Não queria ver aquele homem irritado! Reena admirava-se de não o
ver de todo, nem aos amigos a quem era suposto servir. Ter-se-ia mesmo o
imperador dado ao trabalho de a ir buscar pessoalmente àquela taberna para ser
naquela casa a rapariga que acendia velas e lavava a mesa da cozinha?
Como
Reena desejaria ser apenas essa rapariga. Há quanto tempo não o era. Nem se
importaria do desprezo, se apenas a deixassem em paz. Todos os dias chegava
gente da vila, camponeses e vendedores do mercado que abasteciam o castelo ou
prestavam o tributo do seu trabalho. Chegavam e troçavam dela, e traziam histórias
de quem ela era e do que fazia na taberna, e os criados odiavam-na cada vez
mais. Agora já nem disfarçavam, e já não era nas suas costas que lhe chamavam “rameira”.
Reena
perguntava-se porque insistiam em insultá-la. Já deviam ter percebido que estava
tão habituada à vergonha que meras palavras quase nada custavam suportar. O que
pensariam dela, para a odiarem tanto? Poderiam sequer conceber a verdade,
aquelas pessoas que não tinham sofrido o que ela tinha sofrido? Talvez nem
acreditassem se lhes contasse. Reena poupava-lhes a sua presença, trocando com
eles apenas as palavras necessárias e isolando-se nas suas tarefas. Sempre que
podia, escapava-se para o seu quartinho à hora do pôr-do-sol. Era outono, e os
dias cada vez mais curtos e apagados, mas a luz dourada ainda enchia aquele
quarto, e Reena sentava-se e contemplava-a e acalmava-se na paz que a invadia.
Se fosse só assim, talvez houvesse esperança. Talvez lhes provasse que só
desejava um sítio decente onde viver. Que o que lhes tinham contado não tinha
sido de sua vontade. Talvez pudesse revelar-lhes… Mas era muito cedo, não a
quereriam ouvir. Talvez com o tempo, quando percebessem como estava disposta a
ser prestável. Pelo menos já todos sabiam que lhes obedecia sem se esquivar ao
trabalho, e começavam a habituar-se a mandá-la fazer o que lhes desagradava.
Talvez assim, pela solicitude, começassem a vê-la com outros olhos.
–
Vai levar o vinho ao senhor Eric. – disse-lhe a criada mais nova nessa noite em
que não lhe apetecia ser ela a cumprir o ritual, uma taça de vinho a horas
tardias que Eric apreciava bastante. Ao que parecia, não dormia sem ela.
Nunca
Reena se atemorizara perante uma tarefa, mas desta vez, ao pegar na bandeja com
a taça, sentiu-se estremecer por dentro. A rapariga devia achar que o encargo
era tão simples que lho podia confiar, mas Reena nem sabia onde estava o
imperador. Não se atrevia a entrar onde não fosse autorizada, e só conhecia do
castelo a cozinha e os corredores que levavam ao seu quarto. Mas nada disse ou
perguntou, antes voltou as costas para que ninguém se apercebesse da sua
atrapalhação e saiu da cozinha como se soubesse para onde ia. A última coisa
que desejava era que a julgassem uma tonta que nem se conseguia orientar, e que
o relatassem ao dono da casa.
Tinha
ouvido falar do salão, onde os nobres se reuniam com o imperador ao serão quando
havia visitas. Reena encaminhou-se nessa direcção, guiada pelas poucas
lamparinas, e suspirou ao perceber que se tinha enganado. No salão,
obscurecido, não se demorou sequer para o contemplar duas vezes. Devia ter
calculado, pela falta de archotes acesos, que o imperador se encontraria nos seus
aposentos, algures nos andares de cima, onde nunca tinha ido. Agora estava
perdida e já não sabia para que lado ficava a recôndita escada de serventia.
Oh, que ninguém se cruzasse com ela, perdida e às voltas e à procura! Julgou-o
um alívio, deparar-se com a série de degraus que serpenteavam em caracol até ao
piso superior. Quando os observou melhor, à escassa luz, suspirou de novo e
olhou a bandeja que lhe tremia nas mãos. Como eram altos e íngremes aqueles
degraus. Um véu de lágrimas turvou-lhe os olhos. Tudo era tão difícil agora. Quem
aceitaria na sua casa tão incompetente criada? Aquela era a sua única, a sua última
oportunidade.
Reena respirou
fundo, e apertou com força a bandeja contra o peito. Apoiou a mão esquerda na
parede e começou a subir cautelosamente, receosa de entornar aquele vinho como
se a sua vida dependesse disso. A sua vida dependia disso.
(Fim da sequência)
Próximo excerto
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