quarta-feira, 21 de março de 2018

Nepenthos - Capítulo I - primeira parte

Se era mau, tinha regressado pior.




Eric, o imperador, era chamado o Implacável. O taberneiro não sabia muito bem o que a palavra significava mas não achava que o jovem soberano fosse assim tão mau como tal cognome o anunciava.
Ali, na taberna da vila real, sempre tinha sido um bom freguês que não reclamava da cerveja e pagava com rica moeda, e nunca dele tivera razão de queixa. Naquela noite de outono, como já não seria a primeira vez, até lhe tinha enchido a casa com os seus capitães e homens de armas, e os nobres seus amigos que na guerra tinham conquistado títulos e glória. Celebravam a vitória e lembravam as façanhas de muitas batalhas, e entre gargalhadas e brindes iam comendo e bebendo e não se faziam rogados aos favores das mulheres que lhes punha à disposição. O taberneiro sempre tinha pensado que implacável se dizia de um tirano ou de um bruto, um daqueles nobres que se serviria sem pagar e permitiria que todos aqueles homens bem bebidos arranjassem brigas e lhe partissem tudo sem olhar ao prejuízo. Não era assim o soberano Eric, nem na taberna nem no governo do reino.
Há algum tempo, já depois da guerra, um homem de armas veterano, mas pelo porte e pelo falar alguém de saber e erudição, tinha passado pela taberna, e no ócio de uma noite de vinho tinha explicado ao taberneiro que a palavra implacável tinha também outro sentido. Chamavam assim ao jovem imperador pelos seus feitos na guerra. Em quatro anos apenas, tinha posto fim ao conflito sangrento e centenário que durante gerações tinha dividido a nobreza. Não o conseguira somente pela força das armas, mas pela astúcia também. Imune aos ódios antigos, Eric aliciara aliados entre nobres e plebeus, entre grandes e pequenos, propondo-se a restaurar a paz e a prosperidade àquele reino assolado. Tinha ido ainda mais longe, contra a lei e o costume, oferecendo liberdade aos servos que obrigados ao jugo dos seus senhores combatiam por armas inimigas. Talvez a estratégia não tivesse resultado se as promessas fossem vãs, mas Eric era também implacável no cumprimento da sua palavra. Pelo cansaço da guerra, muitos nobres se lhe juntaram em força militar. Pela esperança de liberdade, multidões de homens humildes lhe juraram lealdade. Nada nem ninguém o conseguira travar. Inabalável, imbatível, vencera batalha após batalha. O veterano sabia do que falava, porque tinha estado em todas elas. E tinha observado, de perto, a fulminante ascensão do jovem soberano.
Ninguém o previa. No dia em que o príncipe herdou a coroa do seu pai, Eric o Gordo, ninguém esperava nada daquele único herdeiro que aos dezoito anos se tornava rei. Ninguém adivinharia agora, ao olhar para ele, alto e forte e de saudáveis cores, que daquele mesmo príncipe, na infância, se julgava que não viveria o suficiente para lhe nascer barba na cara. Sabia-se que em menino era enfermiço, febril e débil, e que o próprio rei não considerava digno e capaz aquele filho de quem falava com desprezo. Do pouco que falava, como se o príncipe já nem permanecesse entre os vivos de tão votado à morte desde o berço. A Eric o Gordo nada parecia afligir a falta de um herdeiro a quem deixar o trono e a coroa. Continuou sempre a lutar, como se não lhe pesasse a idade, e nunca se lhe esgotou o vigor até às vésperas da morte. Morreu como tinha vivido a vida toda, em pleno acampamento militar a preparar-se para a guerra, não em batalha mas de doença súbita, ainda vestido de armadura e deitado na cama de campanha. Aos inimigos, que o esperavam de armas prontas, não importava como morria o rei. Antecipavam jubilosamente o frenesim da guerra final que ditaria qual deles conquistaria a coroa, dos vários que a cobiçavam, agora que enterrada estava a dinastia.
Ninguém contava com o príncipe. Ninguém lembrava que a coroa já tinha legítimo dono. Eric teve de se bater por ela. Derrotou todos os senhores da guerra, uniu a nobreza e estendeu a sua soberania aos pequenos reinos vizinhos que décadas de ameaça tinham arrastado para o conflito. Tão depressa conquistou o título de imperador que já ninguém recordava os breves anos em que fora apenas rei. No fim, Eric puniu os inimigos que até ao último fôlego tinham teimado em arrancar-lhe a coroa e a vida, e foi implacável também.
Tudo isto o veterano de guerra tentou explicar ao taberneiro, que implacável nem sempre significava cruel ou desapiedado, que significava também determinado, inquebrantável. O taberneiro não ficou muito convencido, mas já o homem de armas se interrogava, ele que tinha assistido às proezas militares e políticas do jovem soberano, como podia Eric o Gordo ter-se enganado tanto? Como não tinha visto, o velho rei, o valor do filho que menosprezava? Não seria o primeiro a questionar-se, pois o reino inteiro sabia que nunca aquele príncipe tinha sido favorecido pelo amor do rei. Nem da rainha.
Por aquela altura, o taberneiro preferiu terminar a conversa e despedir-se do freguês, porque achava que o homem já tinha bebido demais e já falava do que não devia. O soberano a quem apelidavam de Implacável não ficaria muito contente se lhe chegasse aos ouvidos que se murmurava sobre os tempos em que era um menino doente, desprezado pelo pai e repudiado pela mãe. E ninguém melhor do que as pessoas da vila conheciam o que se tinha passado dentro do castelo real, ali tão perto. Pudesse o taberneiro tagarelar livremente e teria recordado àquele forasteiro que tudo tinha começado com o casamento entre o rei, Eric o Gordo, quando este era já um homem maduro sem esposa nem herdeiros, e a jovem rainha Elena, obrigada àquele matrimónio. O marido repugnava-a, barrigudo como lhe ficara por cognome, desleixado como um homem de guerra demasiado habituado ao cheiro a sujo dos companheiros de batalha. E um inimigo, ainda por cima. Nem tinha sido outra coisa senão uma tentativa de aliança e tréguas entre clãs inimigos o que os unira naquele casamento. Tréguas, nunca houve nenhumas. Dentro do castelo, a guerra continuava entre esposos. Todo o reino sabia que se odiavam, e que após ter dado à luz aquele único herdeiro a rainha tinha fechado o leito ao marido, concluído que estava o seu sacrifício, e recusado dar-lhe mais filhos. E a rainha fez mais. Rejeitou aquela criança e entregou-a às amas, desde o dia em que nasceu, e nunca o príncipe conheceu dela qualquer semelhança de uma mãe. O resto era também verdade. O menino revelou-se doente, os médicos não lhe auguravam que sobrevivesse, e o rei seu pai não gostou nada de se ver atraiçoado naquele matrimónio sem esposa cujo único resultado era fraco e moribundo. Partiu novamente para a guerra, sem intenções de regressar, e esqueceu que alguma vez tivera mulher ou filho. Durante anos, a nobreza esperou avidamente que Eric o Gordo morresse de velho, se não antes em batalha, para que a coroa caísse na cabeça do mais forte. Já não faltaria muito. E quanto àquela descendência enferma, fruto pouco e tardio, não era sequer coisa que se levasse em consideração. Dizia-se até do príncipe que se por milagre sobrevivesse ao seu pai não teria nesse dia uma única saia a que se agarrar.
Mas o príncipe Eric sobreviveu. E cresceu com um temperamento estranho, reservado, demasiado pensativo para a idade. Rejeitou as amas, todas as amas, e cedo também os criados, resolvido a tomar conta de si próprio, mesmo doente, mesmo necessitando dos cuidados que não tolerava. Preferia ficar, calado e sério, a cismar na solidão dos seus aposentos, e já se murmuravam rumores sobre aquele príncipe que nunca sorria e não falava com ninguém. O taberneiro não se atrevia agora a recordar esses murmúrios, porque o rapazinho enfermo não pereceu como se julgava, antes o passar dos anos lhe foi benéfico e a saúde melhorou-lhe a olhos vistos. Na mesma medida em que piorava o seu feitio. Diziam os criados do castelo que se tornava sisudo, tão frio que a ninguém se apegava, mas também altivo e distante, e colérico. Já temiam aquele pequeno amo de humor irascível, que lhes gritava cada vez mais alto quando não satisfaziam imediatamente as suas ordens. Teria aprendido com o rei e a rainha, que nos últimos tempos de convivência forçada já nada se importavam de levantar a voz um para o outro como não era digno de nobres de tal estirpe? Mas há anos que o rei se ausentara, e suspeitava-se que nunca mais regressasse dos acampamentos enlameados daquela guerra que era a sua verdadeira e única paixão, e também a rainha tinha partido, para as terras da sua família de onde nunca tinha desejado sair. Ficara o príncipe, sozinho, o fedelho que nem devia ter passado do berço e que agora ameaçava ser muito capaz de comandar a casa real com mão de ferro. Os criados não esconderam o alívio quando o príncipe foi enviado para um mosteiro, a última disposição da rainha quanto àquele filho que contra todas as expectativas tinha atingido idade de ser educado. Eric não voltou ao castelo senão depois da guerra, e quando voltou, que diferença!
Do menino doentio e pálido já não restava sequer vestígio. Regressava soberano e vitorioso, empunhando a espada com que tinha decepado inimigos no campo de batalha, lado a lado com os seus capitães e com igual temeridade. As mulheres da taberna diziam que se fizera um belo homem, de cabelos louros de um invulgar tom de escuro e uns olhos de azul profundo como o céu de verão ao pôr-do-sol. A figura de homem a quem não venderiam os seus favores, antes cobiçavam os dele. Mas não chegaram a afoitar-se. Bem cedo descobriram que algo não tinha mudado. O temperamento, frio e distante. O olhar, superior, com que as punha no seu devido lugar. As mulheres preferiam não se aproximar se não fossem chamadas. Porque agora já sabiam, pelos criados que presentemente serviam no castelo, que o imperador continuava irascível. Mais colérico na intimidade do seu lar, onde a diplomática conduta de um soberano ficava à porta e a paciência se lhe esgotava ainda mais depressa do que nos dias em que tinha sido o jovem amo daquela casa. Se era mau, tinha regressado pior.
O taberneiro, e todas as pessoas da vila, conheciam melhor o homem que tinha sido menino, e as suas peculiaridades e bizarrias, e preferiam que as cóleras permanecessem entre as paredes do castelo. Os criados, poucos, porque era uma das extravagâncias do novo soberano não gostar de muita gente em sua casa, que se entendessem com elas. Pois o taberneiro, no seu estabelecimento, não tinha razão de queixa.
Pelo contrário, o negócio tinha deveras melhorado desde o fim da guerra. Não havia quem pudesse dizer que não estava agora mais rico, e notava-se, ali na taberna, onde a moeda fluía. Um soberano assim não podia ser completamente mau, meditava o taberneiro ao servir ele próprio, debruçado numa vénia obsequiosa, todas as canecas de cerveja daquela mesa a que o imperador se sentara com os seus favoritos. Ao vê-lo rir, de qualquer peripécia dos dias das armas, já não pareciam tão intimidantes aqueles olhos de azul profundo. Mas o taberneiro sempre preferia que aquele olhar não o fitasse com atenção, não fosse adivinhar-lhe que sabia mais do que devia.
– Quatro anos, quatro miseráveis anos! Sem contar com os tempos do rei! – recordava o jovem conde Malkom, sentado ao lado do imperador como era privilégio dos seus mais chegados. Voltou a molhar os lábios na cerveja e continuou, de sobrolho levemente franzido e sem a mesma jocosidade dos outros convivas à volta da tosca banca de madeira: – Ainda me custa a crer que já não sei o que é dormir no chão de uma tenda há quase dois anos. Pior que o inimigo, eram as pulgas!




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