Eric,
o imperador,
era chamado o Implacável. O taberneiro não sabia muito bem o que a palavra
significava mas não achava que o jovem soberano fosse assim tão mau como tal
cognome o anunciava.
Ali,
na taberna da vila real, sempre tinha sido um bom freguês que não reclamava da
cerveja e pagava com rica moeda, e nunca dele tivera razão de queixa. Naquela
noite de outono, como já não seria a primeira vez, até lhe tinha enchido a casa
com os seus capitães e homens de armas, e os nobres seus amigos que na guerra
tinham conquistado títulos e glória. Celebravam a vitória e lembravam as façanhas
de muitas batalhas, e entre gargalhadas e brindes iam comendo e bebendo e não se
faziam rogados aos favores das mulheres que lhes punha à disposição. O
taberneiro sempre tinha pensado que implacável se dizia de um tirano ou de um
bruto, um daqueles nobres que se serviria sem pagar e permitiria que todos
aqueles homens bem bebidos arranjassem brigas e lhe partissem tudo sem olhar ao
prejuízo. Não era assim o soberano Eric, nem na taberna nem no governo do reino.
Há
algum tempo, já depois da guerra, um homem de armas veterano, mas pelo porte e
pelo falar alguém de saber e erudição, tinha passado pela taberna, e no ócio de
uma noite de vinho tinha explicado ao taberneiro que a palavra implacável tinha
também outro sentido. Chamavam assim ao jovem imperador pelos seus feitos na
guerra. Em quatro anos apenas, tinha posto fim ao conflito sangrento e centenário
que durante gerações tinha dividido a nobreza. Não o conseguira somente pela
força das armas, mas pela astúcia também. Imune aos ódios antigos, Eric
aliciara aliados entre nobres e plebeus, entre grandes e pequenos, propondo-se
a restaurar a paz e a prosperidade àquele reino assolado. Tinha ido ainda mais
longe, contra a lei e o costume, oferecendo liberdade aos servos que obrigados
ao jugo dos seus senhores combatiam por armas inimigas. Talvez a estratégia não
tivesse resultado se as promessas fossem vãs, mas Eric era também implacável no
cumprimento da sua palavra. Pelo cansaço da guerra, muitos nobres se lhe
juntaram em força militar. Pela esperança de liberdade, multidões de homens
humildes lhe juraram lealdade. Nada nem ninguém o conseguira travar. Inabalável,
imbatível, vencera batalha após batalha. O veterano sabia do que falava, porque
tinha estado em todas elas. E tinha observado, de perto, a fulminante ascensão
do jovem soberano.
Ninguém
o previa. No dia em que o príncipe herdou a coroa do seu pai, Eric o Gordo,
ninguém esperava nada daquele único herdeiro que aos dezoito anos se tornava
rei. Ninguém adivinharia agora, ao olhar para ele, alto e forte e de saudáveis
cores, que daquele mesmo príncipe, na infância, se julgava que não viveria o
suficiente para lhe nascer barba na cara. Sabia-se que em menino era enfermiço,
febril e débil, e que o próprio rei não considerava digno e capaz aquele filho
de quem falava com desprezo. Do pouco que falava, como se o príncipe já nem
permanecesse entre os vivos de tão votado à morte desde o berço. A Eric o Gordo
nada parecia afligir a falta de um herdeiro a quem deixar o trono e a coroa.
Continuou sempre a lutar, como se não lhe pesasse a idade, e nunca se lhe
esgotou o vigor até às vésperas da morte. Morreu como tinha vivido a vida toda,
em pleno acampamento militar a preparar-se para a guerra, não em batalha mas de
doença súbita, ainda vestido de armadura e deitado na cama de campanha. Aos
inimigos, que o esperavam de armas prontas, não importava como morria o rei.
Antecipavam jubilosamente o frenesim da guerra final que ditaria qual deles
conquistaria a coroa, dos vários que a cobiçavam, agora que enterrada estava a
dinastia.
Ninguém
contava com o príncipe. Ninguém lembrava que a coroa já tinha legítimo dono.
Eric teve de se bater por ela. Derrotou todos os senhores da guerra, uniu a
nobreza e estendeu a sua soberania aos pequenos reinos vizinhos que décadas de
ameaça tinham arrastado para o conflito. Tão depressa conquistou o título de
imperador que já ninguém recordava os breves anos em que fora apenas rei. No
fim, Eric puniu os inimigos que até ao último fôlego tinham teimado em
arrancar-lhe a coroa e a vida, e foi implacável também.
Tudo
isto o veterano de guerra tentou explicar ao taberneiro, que implacável nem
sempre significava cruel ou desapiedado, que significava também determinado, inquebrantável.
O taberneiro não ficou muito convencido, mas já o homem de armas se
interrogava, ele que tinha assistido às proezas militares e políticas do jovem
soberano, como podia Eric o Gordo ter-se enganado tanto? Como não tinha visto,
o velho rei, o valor do filho que menosprezava? Não seria o primeiro a
questionar-se, pois o reino inteiro sabia que nunca aquele príncipe tinha sido favorecido
pelo amor do rei. Nem da rainha.
Por
aquela altura, o taberneiro preferiu terminar a conversa e despedir-se do freguês,
porque achava que o homem já tinha bebido demais e já falava do que não devia. O
soberano a quem apelidavam de Implacável não ficaria muito contente se lhe
chegasse aos ouvidos que se murmurava sobre os tempos em que era um menino
doente, desprezado pelo pai e repudiado pela mãe. E ninguém melhor do que as
pessoas da vila conheciam o que se tinha passado dentro do castelo real, ali tão
perto. Pudesse o taberneiro tagarelar livremente e teria recordado àquele
forasteiro que tudo tinha começado com o casamento entre o rei, Eric o Gordo,
quando este era já um homem maduro sem esposa nem herdeiros, e a jovem rainha
Elena, obrigada àquele matrimónio. O marido repugnava-a, barrigudo como lhe
ficara por cognome, desleixado como um homem de guerra demasiado habituado ao
cheiro a sujo dos companheiros de batalha. E um inimigo, ainda por cima. Nem
tinha sido outra coisa senão uma tentativa de aliança e tréguas entre clãs
inimigos o que os unira naquele casamento. Tréguas, nunca houve nenhumas.
Dentro do castelo, a guerra continuava entre esposos. Todo o reino sabia que se
odiavam, e que após ter dado à luz aquele único herdeiro a rainha tinha fechado
o leito ao marido, concluído que estava o seu sacrifício, e recusado dar-lhe
mais filhos. E a rainha fez mais. Rejeitou aquela criança e entregou-a às amas,
desde o dia em que nasceu, e nunca o príncipe conheceu dela qualquer semelhança
de uma mãe. O resto era também verdade. O menino revelou-se doente, os médicos
não lhe auguravam que sobrevivesse, e o rei seu pai não gostou nada de se ver
atraiçoado naquele matrimónio sem esposa cujo único resultado era fraco e
moribundo. Partiu novamente para a guerra, sem intenções de regressar, e
esqueceu que alguma vez tivera mulher ou filho. Durante anos, a nobreza esperou
avidamente que Eric o Gordo morresse de velho, se não antes em batalha, para
que a coroa caísse na cabeça do mais forte. Já não faltaria muito. E quanto àquela
descendência enferma, fruto pouco e tardio, não era sequer coisa que se levasse
em consideração. Dizia-se até do príncipe que se por milagre sobrevivesse ao
seu pai não teria nesse dia uma única saia a que se agarrar.
Mas
o príncipe Eric sobreviveu. E cresceu com um temperamento estranho, reservado,
demasiado pensativo para a idade. Rejeitou as amas, todas as amas, e cedo também
os criados, resolvido a tomar conta de si próprio, mesmo doente, mesmo
necessitando dos cuidados que não tolerava. Preferia ficar, calado e sério, a
cismar na solidão dos seus aposentos, e já se murmuravam rumores sobre aquele
príncipe que nunca sorria e não falava com ninguém. O taberneiro não se atrevia
agora a recordar esses murmúrios, porque o rapazinho enfermo não pereceu como se
julgava, antes o passar dos anos lhe foi benéfico e a saúde melhorou-lhe a
olhos vistos. Na mesma medida em que piorava o seu feitio. Diziam os criados do
castelo que se tornava sisudo, tão frio que a ninguém se apegava, mas também
altivo e distante, e colérico. Já temiam aquele pequeno amo de humor irascível,
que lhes gritava cada vez mais alto quando não satisfaziam imediatamente as
suas ordens. Teria aprendido com o rei e a rainha, que nos últimos tempos de
convivência forçada já nada se importavam de levantar a voz um para o outro
como não era digno de nobres de tal estirpe? Mas há anos que o rei se ausentara,
e suspeitava-se que nunca mais regressasse dos acampamentos enlameados daquela
guerra que era a sua verdadeira e única paixão, e também a rainha tinha
partido, para as terras da sua família de onde nunca tinha desejado sair.
Ficara o príncipe, sozinho, o fedelho que nem devia ter passado do berço e que
agora ameaçava ser muito capaz de comandar a casa real com mão de ferro. Os
criados não esconderam o alívio quando o príncipe foi enviado para um mosteiro,
a última disposição da rainha quanto àquele filho que contra todas as
expectativas tinha atingido idade de ser educado. Eric não voltou ao castelo
senão depois da guerra, e quando voltou, que diferença!
Do
menino doentio e pálido já não restava sequer vestígio. Regressava soberano e vitorioso,
empunhando a espada com que tinha decepado inimigos no campo de batalha, lado a
lado com os seus capitães e com igual temeridade. As mulheres da taberna diziam
que se fizera um belo homem, de cabelos louros de um invulgar tom de escuro e
uns olhos de azul profundo como o céu de verão ao pôr-do-sol. A figura de homem
a quem não venderiam os seus favores, antes cobiçavam os dele. Mas não chegaram
a afoitar-se. Bem cedo descobriram que algo não tinha mudado. O temperamento,
frio e distante. O olhar, superior, com que as punha no seu devido lugar. As
mulheres preferiam não se aproximar se não fossem chamadas. Porque agora já
sabiam, pelos criados que presentemente serviam no castelo, que o imperador
continuava irascível. Mais colérico na intimidade do seu lar, onde a diplomática
conduta de um soberano ficava à porta e a paciência se lhe esgotava ainda mais
depressa do que nos dias em que tinha sido o jovem amo daquela casa. Se era
mau, tinha regressado pior.
O
taberneiro, e todas as pessoas da vila, conheciam melhor o homem que tinha sido
menino, e as suas peculiaridades e bizarrias, e preferiam que as cóleras
permanecessem entre as paredes do castelo. Os criados, poucos, porque era uma
das extravagâncias do novo soberano não gostar de muita gente em sua casa, que
se entendessem com elas. Pois o taberneiro, no seu estabelecimento, não tinha
razão de queixa.
Pelo
contrário, o negócio tinha deveras melhorado desde o fim da guerra. Não havia
quem pudesse dizer que não estava agora mais rico, e notava-se, ali na taberna,
onde a moeda fluía. Um soberano assim não podia ser completamente mau, meditava
o taberneiro ao servir ele próprio, debruçado numa vénia obsequiosa, todas as
canecas de cerveja daquela mesa a que o imperador se sentara com os seus
favoritos. Ao vê-lo rir, de qualquer peripécia dos dias das armas, já não
pareciam tão intimidantes aqueles olhos de azul profundo. Mas o taberneiro
sempre preferia que aquele olhar não o fitasse com atenção, não fosse adivinhar-lhe
que sabia mais do que devia.
–
Quatro anos, quatro miseráveis anos! Sem contar com os tempos do rei! –
recordava o jovem conde Malkom, sentado ao lado do imperador como era privilégio
dos seus mais chegados. Voltou a molhar os lábios na cerveja e continuou, de
sobrolho levemente franzido e sem a mesma jocosidade dos outros convivas à
volta da tosca banca de madeira: – Ainda me custa a crer que já não sei o que é
dormir no chão de uma tenda há quase dois anos. Pior que o inimigo, eram as
pulgas!
Sem comentários :
Enviar um comentário
Todos os comentários são bem vindos: