quinta-feira, 22 de março de 2018

Nepenthos - Capítulo II - segunda parte

Já publicado
Capítulo I - primeira parte



Devia ser aquilo, o desespero, quando a morte, qualquer morte, lhe servia de maior engodo do que a esperança.



Reena admirava-se apenas do tom honesto naquela insistência. Como se alguma vez pudesse recusar. Se era vontade do imperador levá-la para os seus amigos, levá-la-ia. Porque haveria ele de mentir com benévolas promessas? A sua vida já nada valia, nem para o homem que a tinha comprado e que a dispensava de graça. Esperaria mesmo uma resposta, o imperador, se não havia o que responder? Reena baixou os olhos e apertou as mãos uma na outra, e naquele instante lembrou-se de que talvez devesse começar a rezar pela absolvição da sua alma.
Longe de adivinhar a angústia daquele silêncio, Eric estranhava que a rapariga nada dissesse. Seria por isso que o taberneiro se mostrava tão aberto a livrar-se dela? Estaria ali uma imbecil, incapaz de juntar duas palavras? Ou, pelo contrário, achar-se-ia ofendida, aquela criatura insignificante? Ambas as possibilidades lhe desagradavam e a paciência tinha-se-lhe esgotado.
– Bem, se não queres, ver-te-ei por aí. – encolheu os ombros, indiferente, e virou-se para se ir embora.
Reena levantou a cabeça, os olhos abertos de assombro. Não julgava que era uma escolha. Ele ia-se embora? Despedia-se e ia-se embora, sem a obrigar a ir também, porque tinha dito a verdade e não a queria levar contra a sua vontade? E se tinha dito a verdade, não poderia haver igualmente verdade no que oferecia?
– Sim, meu senhor, sim, eu vou. – Eric ouviu atrás de si, numa voz baixa e trémula como se Reena já não estivesse habituada a falar com ninguém há muito tempo. Voltou-se para ela, e viu que se tinha sentado direita, interessada. Não era nenhuma imbecil nem se achava mais importante do que era. Sempre tinha sido uma boa ideia, afinal. Pelo menos a rapariga não passaria privações e não dormiria na palha como um animal, e quanto a si próprio ficaria livre daquela indisposição desagradável que o incomodava há dias. Com um aceno de cabeça, indicou-lhe que o seguisse.
E se não houvesse verdade no que ele dizia, Reena hesitava, e se aquela condescendência fosse um engodo com que a atraía à armadilha? Havia desses, também. Mas que diferença faria, se fosse um engodo? Nem sabia se aceitava por acreditar no que lhe era prometido, ou se na esperança de que aqueles nobres fizessem o que não tinha coragem de fazer a si própria. Sabia somente, com absoluta certeza, que tudo seria preferível a ficar ali. Tentou levantar-se depressa para o seguir, como se já temesse que a deixasse para trás. Demasiado depressa. Num passo precipitado, a perna doente falhou-lhe e caiu desastradamente sobre a palha. A vergonha empalideceu-lhe as faces. Às vezes ainda se esquecia de que era agora outra a sua condição, de que já não era a rapariguinha de antes que se atrevia a correr e fugir. Contendo as lágrimas, ergueu a mão para a parede onde tinha aprendido a apoiar-se. O que pensaria dela aquele homem, vendo a inutilidade em que se tinha tornado? O que pensaria o senhor de qualquer casa onde fosse oferecer o seu trabalho, se por milagre tal liberdade lhe fosse concedida?
Tentava ainda levantar-se, esforçando-se por não parecer uma incapaz, quando o imperador lhe pegou no braço e a pôs de pé. Reena não esperava tal auxílio de alguém tão superior à sua posição. Mas se ele tinha agido por bondade ou impaciência, não chegou a perceber. Antes que pudesse agradecer, Eric já se afastava pelo corredor, e seria melhor não deduzir esperanças infundadas.
Seguiu-lhe os passos, que nunca conseguiria acompanhar, mas entrou no salão a tempo de o ver tirar do bolso duas moedas cintilantes que colocou sobre a mesa, frente ao taberneiro que sempre a tinha tratado como um mau negócio. Duas moedas. Então era isso o que valia a sua vida.
Se mais lágrimas ameaçassem demorá-la, Reena não teve tempo de as chorar. Ao vê-la aparecer, Eric tornou a acenar-lhe para que o seguisse, afinal cheio de pressa como dele tinha adivinhado, e saiu porta fora com o semblante absorto de quem já pensava noutros assuntos. Reena deitou um último olhar ao dono do estabelecimento, até há poucos momentos o amo do seu destino. De costas voltadas para ela, à luz de uma lamparina, este inspeccionava as moedas e admirava-lhes a cunhagem com o brasão do Urso que representava a dinastia real. Reena constatou que a sua pessoa já não lhe suscitava qualquer interesse e concluiu que a transacção estava fechada. Já não era à taberna que pertencia. O seu futuro aguardava-a lá fora, às mãos de um homem poderoso que a tinha comprado por duas moedas, o insignificante preço da sua vida, para suprir divertimentos, talvez, que significassem a sua morte, e nem mesmo assim hesitava em avançar. Devia ser aquilo, o desespero, quando a morte, qualquer morte, lhe servia de maior engodo do que a esperança.
A noite já tinha caído. Pela primeira vez desde que chegara àquela terra, Reena transpôs a porta da taberna e uma aragem fria e outonal soprou-lhe na cara e agitou-lhe os cabelos. Não a achou desagradável, pelo contrário, porque lhe provava na pele que estava realmente a abandonar aquele lugar maldito. Naquele instante de liberdade, entontecedor, nem lhe importava para onde.
O imperador esperava, junto à porta aberta da carruagem, e Reena olhou em volta, confusa, à procura da carroça que a transportasse. Todos os homens da escolta vinham a cavalo, envergando as cores do estandarte do Urso, o negro e o vermelho-escuro, alguns segurando tochas acesas agora que precisariam delas para alumiar a estrada. Mas não havia carroça ou coisa parecida, e subitamente Reena temeu que lhe estivesse reservado segui-los a pé. Segui-los-ia, se conhecesse o caminho, mas nunca tinha saído da taberna e já era noite. Temia perder-se, e que julgassem que fugia. Atreveu-se a olhar para este ou aquele rosto, como se pedisse instruções, e viu neles risos abafados de maliciosa chacota. Podia não os conhecer a eles, mas eles conheciam-na a ela, e Reena baixou a cabeça numa pontada de vergonha. Porque não falavam, porque não lhe diziam o que queriam que fizesse ou para onde devia ir? Não eram eles quem supostamente lhe transmitiria as ordens? De tão desorientada, ergueu os olhos para o imperador, que não tinha nenhuma vontade de rir.
Por esta altura Eric já se encontrava deveras impaciente, perguntando-se porque não percebia ela que estava à espera que entrasse. Vagos, difusos pensamentos de misericórdia devolveram-lhe a paciência. Uma pequena boa acção, que tinha de ser concluída. Para aquela rapariga o olhar teria de ser menos duro, menos frio, mais clemente.
Reena viu aquele olhar e mal conseguiu acreditar que era na carruagem que devia entrar. Em passo hesitante, atreveu-se a avançar. Nunca tinha subido a uma carruagem e estudou o degrau de acesso abaixo da porta de madeira, e procurou onde se agarrar. Tentou primeiro com a perna direita, a que não estava partida. Tudo aquilo era tão difícil para ela, tão difícil. No interior, assentos forrados de tecidos macios e bordados a flores, verdes e vermelhas, quase a detiveram. Como era bonito, à luz das tochas. Como devia ser mais bonito à luz do sol. Era mesmo ali que queriam que entrasse? Sempre era a morte que lhe destinavam, não podia ser outra coisa. Reena pestanejou, como se para acordar de um sonho ou de um pesadelo. Tomou coragem e entrou, e sentou-se ao cantinho oposto à porta.
Eric não a seguiu logo. Voltou-se para os homens da escolta e fulminou-os com um olhar de censura. Não o de um soberano aos seus guardas, mas o de um homem a outros homens a quem lembrava que se metessem na vida deles. O que tinham presenciado nessa noite era privado. Nada que não se entendesse. De sobrolho franzido, subiu para a carruagem e fechou a porta, e os homens entreolharam-se, esclarecidos. Parecia que a rapariga tinha encontrado um protector. Menos risos dali para a frente.
Carruagem e escolta partiram em direcção ao castelo. Reena não sabia a duração da viagem e mantinha-se quieta no seu cantinho, apertando nas mãos a saia do vestido sujo e gasto. Eric tinha-se instalado no assento em frente, o cotovelo apoiado na janela, o queixo pousado na mão fechada. Reena nem tinha coragem de levantar a cabeça. Que ao menos ele não olhasse, que não reparasse naquela presença indigna de tal transporte. Não podia ser assim tão longe, aquele castelo, que essa vergonha não tardasse a acabar.
– O que te aconteceu à perna? – Eric perguntou, e Reena percebeu com novo choque que aquele homem que a levava para um destino incerto também não fazia ideia do que tinha sido a sua vida. Não importava que lhe parecesse gentil. Muitos antes igualmente o tinham parecido, os mesmos que lhe tinham ceifado a esperança tão cedo.
– Eles… Eles bateram-me. Ainda dói muito. – revelou timidamente, e suportou o olhar penetrante que lhe perscrutou os olhos.
Eric não esperava aquela resposta. Não tinha imaginado que a perversidade tivesse chegado tão longe no seu reino, enquanto a guerra entretinha as atenções de quem devia fazer justiça, que uma pobre rapariga fosse espancada até lhe partirem os ossos sem que ninguém se importasse. Reclinou-se para trás, e voltou-se para a paisagem nocturna do arvoredo que ladeava a estrada como se não estivesse interessado em saber mais nada.
Foi o que Reena pensou, que não estava interessado em saber, e nada mais acrescentou. Mas o seu olhar já não se desviou do caminho que discretamente espreitava pela janela. Também ela reparava nas luzes das tochas, longe e perto ao longo da estrada, e à distância nos campos. Guardas, guardas em todo o lado. Reena estava habituada a carcereiros e aos seus chicotes, mas aqueles guardas eram um exército, cada um envergando no cinto uma espada mais longa do que um braço. Então lembrou-se, porque pensava ainda nessas coisas de outrora? Já não havia como fugir. Porque lhe teimavam os pensamentos em escapar-se por essas tolas fantasias de antigamente?



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