Capítulo I - primeira parte
Nada mais do que fazes aqui.
Durante dias, Eric
não se esqueceu do que tinha visto. Não que fosse a primeira vez que o via, mas
algo naquela noite o impressionara. Algo que não sabia o que era nem o desejava
ir desencantar aos confins da alma. Talvez o soubesse, mesmo assim, mas não
tinha tempo a perder com pequenas misericórdias ou qualquer conveniência em
exibi-las. Havia uma solução melhor.
Já
se punha o sol quando ordenou que preparassem a carruagem. Não saía a cavalo,
como de costume, pois não esperava regressar sozinho. Era um curto trajecto
desde o castelo à taberna da vila, e enquanto a noite ia caindo, acinzentada,
Eric dava por si a olhar pela janela e a apreciar com satisfação aquela estrada
principal que ele próprio tinha mandado alargar e aplanar. A carruagem
deslizava sem sobressaltos, mais suave à viagem do que alguma vez tinha sido
nos tempos de Eric o Gordo. De ambos os lados do caminho, as árvores majestosas
tinham sido desbastadas em linhas simétricas, como guias que acolhiam os
viajantes e os cumprimentavam com boas-vindas aos domínios reais. Já iam longe
os dias da guerra, e Eric queria proporcionar à nobreza que o visitasse uma
passagem decente que não a vereda de cabras em que dantes as carroças tropeçavam
e as rodas partiam os eixos. Também aqueles eram os novos tempos.
A
intervalos regulares, cruzava-se com destacamentos de guardas que mantinham a
cerrada vigilância com que outrora vigiavam acampamentos militares. Ao
aproximar da carruagem real e sua escolta, estes afastavam-se e prestavam uma
respeitosa reverência, e Eric gostava de os ver no seu lugar. Aqueles homens
leais, bem pagos e bem estimados, eram bastante melhor defesa do que as antigas
muralhas que rodeavam o castelo. Tinham sido altas e altivas, em tempos, mas
alvo de ataques e pilhagens restavam-lhes por memória os montes de ruínas aqui
e ali. Eric nunca as mandaria reparar, antes sorria ao avistar o que delas
sobrava no lusco-fusco, uma constante recordação de que tinha lutado e de que
tinha vencido. Com secreto prazer, deixava as pedras tombar.
Ainda
era muito cedo para a habitual agitação da taberna, quando a carruagem parou à
porta e Eric desceu. A chegada foi notada, e logo o taberneiro saiu ao seu
encontro enrolando as mãos no avental. Obsequioso e admirado perante a distinta
visita a tão inesperadas horas, indagava em que podia agradar, mas Eric não
levava intenção de se demorar.
–
Diz-me, quanto queres pela rapariga, Reena, penso que se chama? – perguntou,
entrando pelo salão. A lareira ainda não tinha sido acesa mas bastavam os pálidos
clarões que por enquanto animavam as lamparinas para denunciar que a imundície
da noite anterior, ou de muitas noites antes dessa, não tinha conhecido
limpeza.
O
taberneiro mal queria crer no que ouvia, e quase perdia o perpétuo sorriso
servil tal era a perplexidade que lhe assentara no rosto.
–
A puta coxa?! – tenteou, temendo não ter percebido bem ou que o imperador se
tivesse enganado no nome.
–
Sim, a puta coxa. Quanto?
Abismado,
o taberneiro lá acabou por esquecer o sorriso ao falar de negócios.
–
Bem, meu senhor, eu por ela pediria duas moedas, mas para vossa majestade… – e
baixou a cabeça, encolhendo os ombros, porque pouco lhe importava para que
intuitos desejava o imperador adquirir justamente aquela coisa sem valor. O
melhor era guardar para si o espanto e falar depressa e sem rodeios: – Para
vossa majestade, ofereço-a de graça.
–
Muito bem. Onde está ela?
Ainda
não completamente convencido de que o imperador quisesse mesmo levar consigo
aquela imprestável, o taberneiro dobrou-se numa vénia e guiou-o pelo corredor
até ao sítio onde a rapariga dormia. Se era esse o seu desejo! Dobrou-se novamente,
quando o imperador o mandou embora com um gesto, e deixou-os sozinhos como
parecia ser o propósito. Sabia lá do que o soberano gostava e achava melhor não
saber demais.
Eric
não tinha chegado por acaso àquela hora pouco frequentada. As mulheres e os criados
da taberna deviam andar a preparar comida e bebida para os fregueses dessa
noite, e ninguém de importância o teria visto. Reena não estaria entre eles
porque não a tratavam como igual. Mantinham-na à distância, e os aposentos em
que a encontrava apenas confirmavam o que já suspeitava. Espreitou primeiro,
pela porta entreaberta, e viu-a sozinha, sentada em sujas mantas sobre um monte
de palha, a sua única cama junto à parede de tosco tijolo. Nem uma luz havia
naquele quarto esquecido, apenas a tocha do corredor lhe fazia chegar alguma
claridade, mas não lhe parecia que a rapariga se importasse com isso. Nem com
coisa nenhuma. Saberia ela porque era tão desprezada que nem comia na cozinha com
os outros? Do que tinha presenciado, não era difícil de perceber. Com certeza não
era lucrativa para os fins que o taberneiro lhe planeara, e simplesmente a abandonavam,
remetida aos restos. Nada de melhor a aguardava se ficasse naquele sítio.
A
rapariga permanecia quieta e pensativa, de olhar ausente, alheia a que era
observada e muito menos por quem. Tinha ouvido passos perto da porta mas estava
tão habituada a ser ignorada pelas pessoas da casa que já não erguia a cabeça
para as olhar senão quando lhe davam ordens. Nunca se lhe tinham dirigido com
diferente intenção e ainda era cedo para a chamarem. Ainda era cedo, mas a
noite caía, e Reena estremecia ao lembrar-se de que o serão se aproximava.
Talvez tivesse sorte e a ninguém apetecesse troçar dos seus insuficientes
favores. Talvez a deixassem ali ficar em paz, por uma noite que fosse, e
dormir. Adormecer, como se fosse para sempre e nunca mais precisasse de
acordar. Cada noite era pior do que a anterior. Tinha-se iludido, ao chegar, na
sua ténue esperança de que talvez aquele lugar não fosse tão mau como os outros.
Pelo menos ali ameaçavam mandá-la embora, como se tal fosse uma ameaça, como se
durante anos não tivesse planeado outra coisa senão fugir. Quando ainda era
demasiado jovem para que os seus carcereiros permitissem que escapasse. Agora já
não a trancavam. Deixavam-lhe a porta aberta, desinteressados. Agora, que era
tarde demais. Já não podia fugir, desde que lhe tinham partido aquela perna que
às vezes ainda doía tanto. Não havia para onde ir, nem como lá chegar. O que
havia eram noites de sofrimento e dor, e madrugadas de lágrimas que anunciavam
um dia igual ou pior. Agora Reena pensava numa outra fuga, definitiva e
derradeira. Se ao menos conseguisse falar com aquela mulher que vivia na vila,
a quem as outras recorriam quando ficavam grávidas, que lhes dava umas ervas tão
poderosas que se podia morrer delas. Certamente essa mulher saberia de ervas
venenosas para outros propósitos, mas como convencê-la a ajudá-la se esta era
chegada ao taberneiro e não desejaria prejudicar-lhe o negócio? Reena não
depositava grande esperança nesse auxílio. Mas havia outras maneiras, e não
seria a primeira vez que experimentava o gume afiado de uma faca contra a pele
tenra dos pulsos. Não era tão fácil como parecia, nem tão eficaz, nem tão rápido.
Demorava tempo, e havia muitos olhos a vigiá-la. Não, teria de ser outro o
golpe, profundo e irremediável, e teria de ser rápido e fatal, e exigia força.
Reena não achava que tivesse força para fazer o que tinha de ser feito, porque
as suas mãos eram fracas, e a sua alma cobarde, e as lágrimas correram-lhe pelo
rosto. Tanto desejava adormecer. Se ao menos pudesse fechar os olhos e dormir.
O
ranger da porta acordou-a. Contra a luz das tochas, a negra silhueta de um
homem alto e forte entrava no quarto. Outro qualquer tê-la-ia assustado, mas o
tamanho do choque dissipou o susto quando lhe distinguiu as feições. Reena nem
queria crer que estava a ver o imperador no seu aposento miserável e por
instantes quase se esqueceu de respirar.
–
Reena, é o teu nome? – Eric perguntou, como se não soubesse, para a distrair
dos pensamentos sombrios que a levavam a chorar na escuridão. – Venho fazer-te
uma proposta. Tenho observado como os meus amigos têm uma particular predilecção
por ti. Gostaria que os servisses na minha casa quando eles me visitam para não
terem o incómodo de fazer o percurso até aqui. O inverno aproxima-se e a minha
sala é muito mais acolhedora do que este antro malcheiroso. – e Eric olhou em
volta, o sobrolho levantado e desdenhoso. – Se aceitares, servirás no castelo.
Não terás tarefas pesadas, mas deve haver alguma coisa que consigas fazer. O
dono da taberna oferece-te de graça mas quero saber o teu consentimento. O que
dizes?
Reena
não conseguia dizer nada. O que falava, dentro dela, era o medo que subitamente
lhe apertava o coração. Tinha ouvido histórias do que os nobres faziam na
impunidade secreta das suas casas a raparigas sem ninguém no mundo. Raparigas como
ela. Conhecia os amigos do imperador, que troçavam e riam, mas que entre as
paredes da taberna se comportavam como todos os outros, e a usavam e a
esqueciam. Se a queriam levar para longe dos olhares, se o próprio imperador estava
ali para lhe propor tal coisa, ele que a podia mandar buscar por um qualquer criado,
mas vinha sozinho, falar-lhe em privado… Só podia significar que a queriam
levar para fazer pior, muito pior. Para outro tipo de prazeres, proibidos até à
nobreza, que terminavam em sangue e morte. Reena pensou na morte e estremeceu.
Se calhar, por milagre, as suas preces tinham sido ouvidas e o que o imperador
lhe propunha era que desse permissão para que a matassem? Seria isso? Seria rápido,
seria lento? E importava?
–
Então? – Eric insistiu, um pouco impaciente perante aquela demora com que gente
mais importante não se atreveria a fazê-lo perder o seu tempo. Talvez ela não o
conhecesse, pois afinal só vivia na taberna há alguns meses. Se o vira antes
teria sido na sala, em companhia de outros nobres e homens de armas, todos entretidos
em comportamentos, admitia, que nada se adequavam a um soberano. – Sabes quem eu
sou? – inquiriu, mas ela continuava calada, por única resposta um tremor afirmativo
de que sabia, sim, quem ele era, e que o temia, e só então Eric percebeu que
por alguma razão a proposta a apavorava. Aquilo surpreendia-o. Tinha julgado
que ficasse contente. A não ser que a proposta lhe soasse inesperada, demasiado
generosa, algo a desconfiar da parte de um estranho. Era preciso ser mais explícito,
muito mais explícito: – Estou a propor-te que venhas servir-me no castelo, e
terás uma vida melhor, boa comida, roupas decentes, um trabalho leve, e nada
mais do que fazes aqui.
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