quinta-feira, 22 de março de 2018

Nepenthos - Capítulo II - primeira parte

Já publicado
Capítulo I - primeira parte


Nada mais do que fazes aqui.




Durante dias, Eric não se esqueceu do que tinha visto. Não que fosse a primeira vez que o via, mas algo naquela noite o impressionara. Algo que não sabia o que era nem o desejava ir desencantar aos confins da alma. Talvez o soubesse, mesmo assim, mas não tinha tempo a perder com pequenas misericórdias ou qualquer conveniência em exibi-las. Havia uma solução melhor.
Já se punha o sol quando ordenou que preparassem a carruagem. Não saía a cavalo, como de costume, pois não esperava regressar sozinho. Era um curto trajecto desde o castelo à taberna da vila, e enquanto a noite ia caindo, acinzentada, Eric dava por si a olhar pela janela e a apreciar com satisfação aquela estrada principal que ele próprio tinha mandado alargar e aplanar. A carruagem deslizava sem sobressaltos, mais suave à viagem do que alguma vez tinha sido nos tempos de Eric o Gordo. De ambos os lados do caminho, as árvores majestosas tinham sido desbastadas em linhas simétricas, como guias que acolhiam os viajantes e os cumprimentavam com boas-vindas aos domínios reais. Já iam longe os dias da guerra, e Eric queria proporcionar à nobreza que o visitasse uma passagem decente que não a vereda de cabras em que dantes as carroças tropeçavam e as rodas partiam os eixos. Também aqueles eram os novos tempos.
A intervalos regulares, cruzava-se com destacamentos de guardas que mantinham a cerrada vigilância com que outrora vigiavam acampamentos militares. Ao aproximar da carruagem real e sua escolta, estes afastavam-se e prestavam uma respeitosa reverência, e Eric gostava de os ver no seu lugar. Aqueles homens leais, bem pagos e bem estimados, eram bastante melhor defesa do que as antigas muralhas que rodeavam o castelo. Tinham sido altas e altivas, em tempos, mas alvo de ataques e pilhagens restavam-lhes por memória os montes de ruínas aqui e ali. Eric nunca as mandaria reparar, antes sorria ao avistar o que delas sobrava no lusco-fusco, uma constante recordação de que tinha lutado e de que tinha vencido. Com secreto prazer, deixava as pedras tombar.
Ainda era muito cedo para a habitual agitação da taberna, quando a carruagem parou à porta e Eric desceu. A chegada foi notada, e logo o taberneiro saiu ao seu encontro enrolando as mãos no avental. Obsequioso e admirado perante a distinta visita a tão inesperadas horas, indagava em que podia agradar, mas Eric não levava intenção de se demorar.
– Diz-me, quanto queres pela rapariga, Reena, penso que se chama? – perguntou, entrando pelo salão. A lareira ainda não tinha sido acesa mas bastavam os pálidos clarões que por enquanto animavam as lamparinas para denunciar que a imundície da noite anterior, ou de muitas noites antes dessa, não tinha conhecido limpeza.
O taberneiro mal queria crer no que ouvia, e quase perdia o perpétuo sorriso servil tal era a perplexidade que lhe assentara no rosto.
– A puta coxa?! – tenteou, temendo não ter percebido bem ou que o imperador se tivesse enganado no nome.
– Sim, a puta coxa. Quanto?
Abismado, o taberneiro lá acabou por esquecer o sorriso ao falar de negócios.
– Bem, meu senhor, eu por ela pediria duas moedas, mas para vossa majestade… – e baixou a cabeça, encolhendo os ombros, porque pouco lhe importava para que intuitos desejava o imperador adquirir justamente aquela coisa sem valor. O melhor era guardar para si o espanto e falar depressa e sem rodeios: – Para vossa majestade, ofereço-a de graça.
– Muito bem. Onde está ela?
Ainda não completamente convencido de que o imperador quisesse mesmo levar consigo aquela imprestável, o taberneiro dobrou-se numa vénia e guiou-o pelo corredor até ao sítio onde a rapariga dormia. Se era esse o seu desejo! Dobrou-se novamente, quando o imperador o mandou embora com um gesto, e deixou-os sozinhos como parecia ser o propósito. Sabia lá do que o soberano gostava e achava melhor não saber demais.
Eric não tinha chegado por acaso àquela hora pouco frequentada. As mulheres e os criados da taberna deviam andar a preparar comida e bebida para os fregueses dessa noite, e ninguém de importância o teria visto. Reena não estaria entre eles porque não a tratavam como igual. Mantinham-na à distância, e os aposentos em que a encontrava apenas confirmavam o que já suspeitava. Espreitou primeiro, pela porta entreaberta, e viu-a sozinha, sentada em sujas mantas sobre um monte de palha, a sua única cama junto à parede de tosco tijolo. Nem uma luz havia naquele quarto esquecido, apenas a tocha do corredor lhe fazia chegar alguma claridade, mas não lhe parecia que a rapariga se importasse com isso. Nem com coisa nenhuma. Saberia ela porque era tão desprezada que nem comia na cozinha com os outros? Do que tinha presenciado, não era difícil de perceber. Com certeza não era lucrativa para os fins que o taberneiro lhe planeara, e simplesmente a abandonavam, remetida aos restos. Nada de melhor a aguardava se ficasse naquele sítio.
A rapariga permanecia quieta e pensativa, de olhar ausente, alheia a que era observada e muito menos por quem. Tinha ouvido passos perto da porta mas estava tão habituada a ser ignorada pelas pessoas da casa que já não erguia a cabeça para as olhar senão quando lhe davam ordens. Nunca se lhe tinham dirigido com diferente intenção e ainda era cedo para a chamarem. Ainda era cedo, mas a noite caía, e Reena estremecia ao lembrar-se de que o serão se aproximava. Talvez tivesse sorte e a ninguém apetecesse troçar dos seus insuficientes favores. Talvez a deixassem ali ficar em paz, por uma noite que fosse, e dormir. Adormecer, como se fosse para sempre e nunca mais precisasse de acordar. Cada noite era pior do que a anterior. Tinha-se iludido, ao chegar, na sua ténue esperança de que talvez aquele lugar não fosse tão mau como os outros. Pelo menos ali ameaçavam mandá-la embora, como se tal fosse uma ameaça, como se durante anos não tivesse planeado outra coisa senão fugir. Quando ainda era demasiado jovem para que os seus carcereiros permitissem que escapasse. Agora já não a trancavam. Deixavam-lhe a porta aberta, desinteressados. Agora, que era tarde demais. Já não podia fugir, desde que lhe tinham partido aquela perna que às vezes ainda doía tanto. Não havia para onde ir, nem como lá chegar. O que havia eram noites de sofrimento e dor, e madrugadas de lágrimas que anunciavam um dia igual ou pior. Agora Reena pensava numa outra fuga, definitiva e derradeira. Se ao menos conseguisse falar com aquela mulher que vivia na vila, a quem as outras recorriam quando ficavam grávidas, que lhes dava umas ervas tão poderosas que se podia morrer delas. Certamente essa mulher saberia de ervas venenosas para outros propósitos, mas como convencê-la a ajudá-la se esta era chegada ao taberneiro e não desejaria prejudicar-lhe o negócio? Reena não depositava grande esperança nesse auxílio. Mas havia outras maneiras, e não seria a primeira vez que experimentava o gume afiado de uma faca contra a pele tenra dos pulsos. Não era tão fácil como parecia, nem tão eficaz, nem tão rápido. Demorava tempo, e havia muitos olhos a vigiá-la. Não, teria de ser outro o golpe, profundo e irremediável, e teria de ser rápido e fatal, e exigia força. Reena não achava que tivesse força para fazer o que tinha de ser feito, porque as suas mãos eram fracas, e a sua alma cobarde, e as lágrimas correram-lhe pelo rosto. Tanto desejava adormecer. Se ao menos pudesse fechar os olhos e dormir.
O ranger da porta acordou-a. Contra a luz das tochas, a negra silhueta de um homem alto e forte entrava no quarto. Outro qualquer tê-la-ia assustado, mas o tamanho do choque dissipou o susto quando lhe distinguiu as feições. Reena nem queria crer que estava a ver o imperador no seu aposento miserável e por instantes quase se esqueceu de respirar.
– Reena, é o teu nome? – Eric perguntou, como se não soubesse, para a distrair dos pensamentos sombrios que a levavam a chorar na escuridão. – Venho fazer-te uma proposta. Tenho observado como os meus amigos têm uma particular predilecção por ti. Gostaria que os servisses na minha casa quando eles me visitam para não terem o incómodo de fazer o percurso até aqui. O inverno aproxima-se e a minha sala é muito mais acolhedora do que este antro malcheiroso. – e Eric olhou em volta, o sobrolho levantado e desdenhoso. – Se aceitares, servirás no castelo. Não terás tarefas pesadas, mas deve haver alguma coisa que consigas fazer. O dono da taberna oferece-te de graça mas quero saber o teu consentimento. O que dizes?
Reena não conseguia dizer nada. O que falava, dentro dela, era o medo que subitamente lhe apertava o coração. Tinha ouvido histórias do que os nobres faziam na impunidade secreta das suas casas a raparigas sem ninguém no mundo. Raparigas como ela. Conhecia os amigos do imperador, que troçavam e riam, mas que entre as paredes da taberna se comportavam como todos os outros, e a usavam e a esqueciam. Se a queriam levar para longe dos olhares, se o próprio imperador estava ali para lhe propor tal coisa, ele que a podia mandar buscar por um qualquer criado, mas vinha sozinho, falar-lhe em privado… Só podia significar que a queriam levar para fazer pior, muito pior. Para outro tipo de prazeres, proibidos até à nobreza, que terminavam em sangue e morte. Reena pensou na morte e estremeceu. Se calhar, por milagre, as suas preces tinham sido ouvidas e o que o imperador lhe propunha era que desse permissão para que a matassem? Seria isso? Seria rápido, seria lento? E importava?
– Então? – Eric insistiu, um pouco impaciente perante aquela demora com que gente mais importante não se atreveria a fazê-lo perder o seu tempo. Talvez ela não o conhecesse, pois afinal só vivia na taberna há alguns meses. Se o vira antes teria sido na sala, em companhia de outros nobres e homens de armas, todos entretidos em comportamentos, admitia, que nada se adequavam a um soberano. – Sabes quem eu sou? – inquiriu, mas ela continuava calada, por única resposta um tremor afirmativo de que sabia, sim, quem ele era, e que o temia, e só então Eric percebeu que por alguma razão a proposta a apavorava. Aquilo surpreendia-o. Tinha julgado que ficasse contente. A não ser que a proposta lhe soasse inesperada, demasiado generosa, algo a desconfiar da parte de um estranho. Era preciso ser mais explícito, muito mais explícito: – Estou a propor-te que venhas servir-me no castelo, e terás uma vida melhor, boa comida, roupas decentes, um trabalho leve, e nada mais do que fazes aqui.





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