Capítulo I - primeira parte
Se me quiserem fazer mal, não vai ser esta chave a
impedi-los de arrombar a porta.
O castelo parecia
ainda mais majestoso quando a carruagem se aproximou. Reena olhava, e tentava
calar a esperança. Podia ser verdade? Podia aquele ser um lar, o seu lar? Tinha
sonhado com um lar, um sonho tão vago e distante como se tornara esse ansiado abrigo,
mas tinha-o sonhado pequeno e modesto, nunca na grandeza daquele castelo que se
lhe apresentava perante os olhos. A carruagem cruzou o portão, pesado e largo,
e parou no pátio interior. Intimidada, Reena contemplou a imponência das torres
de pedra cinzenta ao luar, antigas como a dinastia real que nelas estabelecera
residência durante séculos. Dentro do castelo não havia guardas, nem sequer nos
lugares de vigia onde outrora os sentinelas teriam patrulhado as ameias. Essa
ausência Reena não estranhou, depois do que vira, em todo o redor, os archotes
dos soldados que protegiam o castelo e a vila. Lamentava agora não se conseguir
recordar de tudo o que ouvira do imperador, longe de imaginar que um dia o
viesse a conhecer e muito menos servi-lo no seu castelo. Podia ser verdade?
Ser-lhe permitido ficar naquela casa nobre e importante, como criada, exercendo
um trabalho digno?
Eric
saiu da carruagem e apressou-se a dar instruções a um dos seus homens. Depois
subiu os degraus da porta principal e desapareceu, e Reena não o tornou a ver nessa
noite.
O
guarda, investido dessa missão, guiou-a até uma porta mais pequena e lateral,
que dava para a cozinha, e apresentou-a aos criados. Reena estava ali para
partilhar as tarefas que não fossem demasiado pesadas. Deviam acomodá-la e
incluí-la na rotina da casa. Eram essas as ordens do imperador. Cumprida a
incumbência, o guarda retirou-se para outros deveres e deixou-a sozinha com os
cinco serviçais que desconfiados a olhavam de alto a baixo.
Era
hora da ceia e deixaram-na sentar-se à mesa e comer com eles. A velha
cozinheira, uma criada mais nova e três homens fortes que se ocupavam da lenha
e dos cavalos. Mas não sem lhe perguntarem de onde vinha. Assim que souberam,
todos se empertigaram e trocaram olhares de pasmo e desdém. A criada mais nova
fitava-a com repulsa como se tivesse peste que se pegasse. Os criados riam-se
entre eles. A velha cozinheira, furiosa porque o imperador tinha levado para
dentro daquelas paredes uma mulher da vida, mandou-a fazer a cama no outro lado
do castelo para não se misturar com as pessoas honradas.
Nada
daquilo foi estranho para Reena. Já não era o primeiro lugar onde até os
criados a consideravam inferior. E se os criados a tratavam assim, o que não
pensariam dela os nobres?
Embora
advertida de que na manhã seguinte deveria procurar aposentos mais distantes,
nessa primeira noite destinaram-lhe uma divisão perto da cozinha. Reena aceitou
com agrado aquele quartinho improvisado, onde existia uma cama de verdade e
cobertas limpas. Por uma noite, pelo menos, podia dormir em paz. Se os olhos não
lhe teimassem em manter-se abertos no escuro. Não se esquecia daquela história
de uma pobre rapariga apanhada por certos fidalgos na calada da noite, e
encontrada degolada ao alvorecer, abandonada na floresta e com as vestes
rasgadas. Estaria ali para morrer? Seria toda aquela recepção uma armadilha para
a manterem iludida e dócil, confiante de que ocuparia uma posição de criada
igual às outras? Os serviçais que residiam no castelo eram poucos. Muitos
outros moravam na vila e só chegavam de manhã, quando eram necessários. Mas não
passavam lá a noite. Bastavam aqueles para suprir as tarefas nocturnas,
explicavam-lhe. Reena pensava antes que se lhe estivesse reservado um destino
sangrento não haveria muitas testemunhas que o presenciassem. E ninguém no
mundo daria pela sua falta.
Era
como num pesadelo, ou num sonho, que no dia seguinte Reena se aventurava pela
ala mais afastada do castelo à procura de um quarto. Encontrou vários,
desocupados e poeirentos, as camas despidas e as mobílias arrumadas aos cantos
por único indício de que em tempos também teriam servido de aposentos à gente
do castelo. Reena gostou de um deles. Era mais estreito do que os outros, e
parte da parede exterior devia ficar abaixo do solo, mas Reena ponderou que
assim seria quente de inverno e fresco de verão. Se fosse para durar, aquela incerta
estadia. A cama permanecia encostada à parede oposta, e era de excelente
madeira, sólida e polida. Quem ocupara aquele quarto tivera bastante mobília à
disposição, pois nem faltava um banco e uma mesinha, e uma arca onde guardar os
seus pertences. Se os viesse a ter. Havia até uma pequena janela, quase uma
fresta e quase no tecto, mas suficiente para que entrassem por ela os últimos
raios de sol ao entardecer e os primeiros ao alvorecer, e todo aquele quarto se
encheria de luz dourada. Reena sentou-se na cama por fazer, e tão depressa
sorriu como sentiu os lábios molhados de lágrimas salgadas. Talvez não fosse
para durar. Sim, era acolhedor e agradável, mas talvez fosse curta a estadia.
Talvez fosse aquilo o desespero, porque havia tantas coisas que temia mais do
que a morte.
Reena
levantou-se e limpou as lágrimas, e de propósito travou essas ideias na
consoladora intenção de abrir a arca e desvendar o que continha. O que encontrou
surpreendeu-a. Roupas boas e bonitas, de homem e mulher. Talvez tivesse morado
ali um casal, em tempos? Eram brancas as camisas de linho e quentes e macios os
vestidos de lã. Os sapatos, de bom couro, protegiam da chuva e da neve. Mas a
mais espantosa descoberta, entre vestes e mantas, foi um belo e pequeno
espelho. O metal que o emoldurava e que lhe servia de pega, tão habilmente
talhado pela maestria de um destro artesão, assemelhava-se à prata, mas Reena não
acreditava que o fosse. Nem acreditava que tudo aquilo não tivesse dono.
Certamente mexia no que não devia e apressou-se a colocar as coisas como estavam
e a fechar a arca.
Perguntou
às criadas pelo quarto e pelas roupas, e a velha cozinheira respondeu-lhe
rispidamente que podia ficar lá e com o que lá estava, que era um sítio bem
afastado, e que se livrasse dos trapos miseráveis que a cobriam. Reena
atreveu-se a insistir se não pertenceriam a alguém, mas nenhuma das mulheres
queria falar com ela e novamente a cozinheira a interrompeu, com grande irritação,
que eram coisas dos antigos criados da rainha, que tinham partido há muitos
anos, e que se preocupasse antes em pôr-se apresentável porque parecia uma
rameira. Reena não fez mais perguntas nem tornou a tentar dirigir-lhes a
palavra. Sabia o que se passava. Detestavam-na, e à sua presença. Pouco
importava que roupa vestisse. Nada viam senão a sua desonra.
Mas
deram-lhe um avental, e uma touca como a delas, e quando Reena voltou à
cozinha, assim arranjada como uma criada, as duas mulheres não contiveram o
riso. A mais velha mandou-a polir os tachos e ainda se riu mais. Reena
sentou-se perto dos utensílios e começou o seu trabalho sem perceber o motivo
da galhofa. Logo compreendeu, quando ambas a olharam, pasmadas, como se não
acreditassem que soubesse o que fazer. Depois viraram-lhe as costas, despeitadas,
e continuaram a murmurar entre elas e a deitar-lhe esgares de tanta aversão que
Reena se perguntou se não devia antes ir trabalhar para o pátio. Mas não o fez.
Junto das outras mulheres estaria mais segura, se é que podia sentir-se segura.
Os
homens do castelo, rudes e grosseiros como os seus conterrâneos da vila,
portavam-se ainda pior nas costas das criadas e escarneciam sugestivamente.
Quando chegou a hora da refeição, Reena não teve coragem de se sentar com eles.
A cozinha era grande, podia comer noutro lugar, ou antes ou depois. Podia até não
comer, porque não tinha apetite. Não eram as troças dos criados o que a afligia,
nem nada a que não estivesse habituada. Era o cair da noite o que temia.
Admirava-se
que lhe permitissem retirar-se para o seu quartinho, sem que ninguém a
incomodasse. Isso é que era novo, e invulgar, e assustava-a. Pensou em fechar a
porta, quando reparou com atenção no pormenor que durante o dia não lhe tinha
parecido importante. A porta não tinha uma tranca como nos outros aposentos.
Tinha uma fechadura, e a fechadura tinha uma chave, grande e antiga e gasta
pelos anos. Noutros tempos, em época talvez anterior às modestas mobílias dos
criados ausentes, aquele lugar não tinha servido como quarto de dormir. Seria
talvez um cofre, onde se guardavam valores ou armas. Ou uma masmorra onde se
encerravam prisioneiros. A pequena janela era demasiado estreita para que
fugissem por ela. Reena não tinha ponderado a origem da chave ao escolher
aquele quarto, mas ponderava agora. E o mais estranho é que a tinham deixado
escolher, e que a chave se encontrava à sua disposição para que se fechasse por
dentro. E adiantaria, qualquer fechadura, isolada como estava? Não a teriam
mandado para ali de propósito, para não verem nem ouvirem? Não seria a primeira
vez e Reena não poderia dizer que não conhecia o estratagema. O que
desconhecia, o que a aterrorizava, era o objectivo. Deteve-se, paralisada, nos
seus trajes de criada, com a pesada chave na mão, a perguntar-se o significado
de tudo aquilo. Julgariam que a conseguiam iludir? E que era necessário? Não
saberiam que era como aqueles prisioneiros para quem não existia fuga? Se me
quiserem fazer mal, não vai ser esta chave a impedi-los de arrombar a porta,
concluiu, e não se deu ao trabalho de a trancar.
Seria
enfim a morte a visitá-la nessa noite? Reena pensou na taberna, e nos sítios
anteriores, e lembrou-se de que não tinha sido outro o engodo a convencê-la a
caminhar até ali de livre vontade. Temia a dor e o sofrimento, mas não lamentava
o fim. Libertou-se da touca e do vestido, e deitou-se na cama e apagou a única
vela. Havia luar, e não se atrevia a fechar os olhos. Porque esperavam? De que
esperavam? Que nova e desconhecida tormenta entraria por aquela porta? Reena não
queria ter medo, dizia a si própria que estava farta de ter medo, mas chegou-se
contra a parede e fitou a porta.
A
luz rosada do amanhecer já inundava o quarto quando acordou. Tinha esperado, mas
nada tinha entrado pela porta e o cansaço tinha-a vencido. Seria verdade, então?
Seria uma criada, apenas uma criada?
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