domingo, 20 de setembro de 2020

Miasma - Capítulo II





Um simples muro rodeava o castelo. Tinha havido muralhas, em tempos, destruídas durante a guerra. Ainda se lhes viam as ruínas, aqui e ali, encobertas pela verdura da montanha. Eric não parecia interessado em mandá-las reconstruir. Há muito tempo que as batalhas se travavam em terreno aberto. Já ninguém sitiava castelos.
Os portões não estavam apenas abertos. Estavam escancarados. Nem um guarda os vigiava. Eric semicerrou os olhos, como costumava fazer quando algo lhe desagradava. Mas desta vez não estava irritado.
– O Rurik avisou-me disto. Os guardas têm-se afastado do castelo. Os criados também. É o miasma que os faz fugir, prima.
Hildegaard tinha reparado, ao longo do caminho desde a vila até ali, que cada vez se via menos gente nos campos. Perto do castelo, tudo estava deserto. Mas não houve oportunidade de responder. A carruagem já parava no pátio. Eric saiu, com o filho ao colo, sem nenhuma alegria por estar em casa.
Atrás dele, Hildegaard desceu o degrau da carruagem e deitou um olhar demorado à residência do imperador. Esperava mais. O castelo era grande, muito maior do que os castelos das Terras Verdes. Mas talvez o tivesse imaginado ainda mais majestoso. A morada da família do Urso que tinha expulsado a sua do trono. Por outro lado, talvez tudo parecesse pequeno a quem acabava de passar uma temporada no palácio do duque Alexander. Pequeno e tacanho e decrépito.
Dali do pátio, já não se viam as farripas de estranha neblina que avistara ao longe. Estava lá. Sem dúvida que estava lá. Mas tinha-se escondido. Agora tudo parecia envolto numa névoa pardacenta, como se o próprio ar fosse cinzento. Ninguém diria que não era um fim de tarde habitual àquela altura do ano, mas todos o sentiam.
Eric pousou o menino no chão e avançou até ao casal que o recebia à entrada principal. Hildegaard julgou que eram os criados.
– Quem sois vós? – perguntou-lhes ele, de sobrolho franzido. – Onde estão os outros?
– Sou o Hankle, irmão da Nannaka. Esta é a minha mulher, Wilhelmina. – disse o homem. – Os outros estão na vila. Estamos aqui a fazer-lhes um favor.
O homem olhou em volta, à estranha que era Hildegaard, aos guardas da escolta, e hesitou em continuar. Atrapalhado, baixou os olhos. Hildegaard tinha conhecido Nannaka em Dois Portos. Antiga cozinheira do seu primo. Loira, olhos azuis, muito bonita. Agora reconhecia as parecenças. Os mesmos olhos, o mesmo cabelo. Mas o irmão, coitado, não era bonito. Forte e entroncado, era a versão feia da irmã, como acontecia tantas vezes. Se não soubesse já, Hildegaard teria adivinhado que era um camponês, pelos modos e a rudeza. Ao lado dele, a mulher magra, de cabelos castanhos apanhados atrás da nuca, parecia mais velha do que era. Pareciam-no ambos, embora devessem andar pelos trinta anos. Mas havia uma bondade no rosto dela, uma doçura nos seus olhos escuros, que Hildegaard não tinha visto a mais ninguém naquelas partes.
– Um favor? – insistiu Eric, boquiaberto.
O homem hesitou de novo, mas acabou por explicar, em voz sumida:
– Os outros pediram-nos que ficássemos aqui a passar a noite. Não querem dormir no castelo. Por causa dos barulhos.
– Agora há barulhos?!… – Eric empalideceu.
– Nada que nos incomode. Mas os outros têm medo. – o homem encolheu os ombros, como se lhes chamasse tolos.
– Nós não temos medo da senhora. – disse a mulher, sorrindo a Eric, julgando que dizia algo agradável. – Uma senhora tão amável e bonita, como a vemos no retrato, não pode querer mal a ninguém.
Eric empalideceu mais. Falavam de Micenne, a mãe do menino. Pensavam que era ela o fantasma. Hildegaard observou o seu primo, cada vez mais transtornado. Se a mesma suspeita o tivesse assaltado, tinha-a mantido em segredo. Talvez, na dor do luto, desejasse que fosse Micenne quem ainda permanecia no castelo. Hildegaard tinha-o visto muitas vezes, como ao perder alguém querido as pessoas preferiam o seu fantasma à completa ausência.
– Vou à vila chamar os outros. – ofereceu Hankle, no silêncio do imperador. – Disseram-nos que o senhor avisa sempre com antecedência quando está para chegar, mas desta vez não avisou. Não estávamos à espera. Mas aquele homem esteve aqui, o Rurik, e disse que agora todos somos livres. Por isso eles não pediram permissão.
– Foram-se embora? – Eric perguntou, um tom de sobressalto na sua voz. Sim, tinha abolido a servidão no seu castelo, mas subitamente temia ficar sem criados.
– Não se foram embora, meu senhor. Só não dormem no castelo por causa dos barulhos. Eu vou buscá-los.
– Espera! – Eric tentou recompor-se. Eram muitos choques ao mesmo tempo. – Trago uma convidada. A minha prima, a princesa Hildegaard. Temos de instalar-nos. Precisamos de comida e de lareiras acesas.
O homem e a mulher deixaram cair o queixo e por longos momentos não tiraram os olhos de Hildegaard. O imperador tinha uma prima, uma princesa! Ninguém ali sabia. Hildegaard tentou sorrir, para ser bem-educada. Não lhes estranhava o espanto. Durante anos tinha feito tudo para que a esquecessem. Mas não contava que Eric a anunciasse como princesa, e envergonhou-se do seu vestido velho e gasto, de um pano rijo de que já não se reconhecia a cor. Verde musgo. Tinha sido verde musgo. Que bela figura de princesa dava de si própria. Mas pelo menos trazia um vestido. Não se atreveria a usar roupas de homem por ali, as calças e o casaco largo que trazia na trouxa, um disfarce para viajar sem ser incomodada. Naquelas terras, podia ser suficiente para ser acusada de bruxaria.
– Eu tenho sopa. – declarou a sorridente Wilhelmina, e voltou-se para o menino com carinho na voz: – Tens fome, pequenino? Vem com a Wilhelmina!
Notava-se que a mulher gostava de crianças, mas Eric tinha razões para a desencorajar:
– O meu filho rejeitou as amas. Ele não…
O menino apenas hesitou uns instantes. Olhou a mulher, como se a medisse de alto a baixo, e correu para ela no seu passinho de bebé. Deixou que lhe desse a mão e entrou com ela pela porta da cozinha. Eric não disse mais nada, de tão abismado.
– Eu vou já acender as lareiras. – Hankle assegurou, e entrou também.
Os homens da escolta já tinham começado a descarregar as bagagens e a recolher os cavalos ao estábulo. Hildegaard viu que alguém já levava o seu, um belo cavalo ruço, da cor da neve a derreter entre pedras cinzentas. Eric estendeu-lhe o braço, convidando-a a entrar. Com um sorriso, Hildegaard subiu a escadaria da entrada e cruzou o limiar da porta.
E algo não a considerava bem-vinda. Hildegaard sentiu o frio, como um dedo gelado a perfurar-lhe o estômago. Custou-lhe reprimir um gemido. Eric não se apercebeu, entretido a apontar-lhe o caminho para o salão do castelo. Hildegaard respirou fundo e olhou antes as sombras. Já havia uma lamparina acesa no vestíbulo, mas quase nada alumiava. A presença, densa à volta deles, amortecia a luz. Pelos Céus, o seu primo tinha razão. Havia algo ali!
Eric já parecia esquecido, habituado ao desconforto. Na sala ainda começou a despir a longa capa de inverno, mas estava tanto frio que mudou de ideias.
– Vamos esperar que o homem acenda a lareira. – disse a Hildegaard, e inspeccionou o salão fechado há meses. E notava-se que há meses não via limpeza. Eric suspirou, para não se enfurecer como noutros tempos, mas virou-se para a sua prima e levantou os braços. – Vês o que eu tenho de aturar? Já nem sei quem é que trabalha na minha casa! Chego aqui e encontro dois estranhos. Aqueles imbecis nem perceberam o que significa a liberdade que lhes ofereci. Devem julgar que podem fazer o que lhes der na gana! Oh, prima, como tenho falhado com estes mandriões!
– Acalma-te, primo. Não é caso de vida ou de morte.
Hildegaard sabia que a raiva do seu primo para com os criados era antiga. Desde infância, quando os tinha rejeitado a todos. Entregue aos criados por uma mãe que o rejeitara a ele. Mas já era altura de separar o passado do presente.
Sobre a grande lareira, como era costume, exibia-se o brasão do Urso, reluzente, negro e cor-de-sangue. E ainda assim não ofuscava o retrato na parede, bem colocado onde todos o podiam admirar. Hildegaard aproximou-se, curiosa. Como ela tinha sido bela, Micenne. Jovem e esguia. Os cabelos loiros entrançados em complicados padrões de madeixas e veludo azul. Um azul igual ao do vestido, bordado a prata no decote. O sorriso era doce, os olhos ternos. O artista tinha-a pintado com o menino nos joelhos, a perfeita imagem da boa mãe. Não seria só uma imagem, Hildegaard tinha a certeza. Eram dela os cabelos do pequeno Eric, claros como trigo. O menino não herdara o loiro escuro do seu primo, de uma cor invulgar, como ouro velho. Uma cor que Hildegaard via no espelho ao pentear-se. Um legado de família, inconfundível. Tinham outros traços em comum. Diziam que eram tão parecidos que podiam passar por irmãos. Mas os olhos dele eram de um azul profundo, como um céu de verão ao anoitecer, e Hildegaard tinha olhos verdes. Devia-os à sua mãe.
Hildegaard ia comentar, quando se voltou para o seu primo. Também ele contemplava o retrato. Os olhos cintilavam-lhe de lágrimas, daquela maneira que choravam todos os que não viam a pessoa amada há muito tempo. Daquela maneira que lembravam que não a veriam nunca mais.
Comovida, Hildegaard deu-lhe o braço. Eric estendeu uma mão sobre a dela e por instantes partilharam o silêncio do luto. Dois lutos, para ele, e como devia ser avassalador.
– Não é ela. – murmurou-lhe Hildegaard, baixinho. – Tinhas razão, está aqui qualquer coisa, mas não é ela. Onde ela está, está em paz. Acredita nisto.
Eric levantou a cabeça, o rosto desconsolado. Talvez tivesse mesmo desejado que fosse ela. O luto fazia coisas estranhas às pessoas.
O homem entrou no salão, os braços carregados de lenha. Com os seus modos bruscos, não disse uma palavra nem olhou para eles. Hildegaard teve pena da mulher na cozinha. Não parecia merecer um marido tão abrutalhado. Mas talvez ele fosse diferente com ela, quando estavam sós. Tantas coisas eram diferentes do que pareciam.
Eric limpou as lágrimas, disfarçadamente, e começou a falar com o homem. Sobre o que se tinha passado na sua ausência, sobre os outros criados, sobre a vila. O menino tinha ficado na cozinha, talvez a comer a sopa.
Hildegaard deu uns passos pela sala e aproximou-se da porta para o corredor. Cada vez mais frio, ao aproximar-se. Todo o castelo cheirava a frio, se o frio tivesse cheiro. Hildegaard esfregou os braços para se aquecer e viu o seu bafo no ar. Também acontecia com as visitas do Outro Lado, às vezes, mas aquilo era diferente. Aquilo, Hildegaard nunca tinha visto.
Aproveitou que Eric estivesse entretido com a conversa e saiu para o corredor. Imediatamente, o ar adensou-se à sua volta. Tinha sido reconhecida, e que era uma ameaça.

Não tens poder sobre mim. Ordenou. O ser das trevas recolheu-se à sua passagem como uma cobra sobre si própria.



Continua.

O conto “Miasma” está disponível para download gratuito AQUI.

Sem comentários :

Enviar um comentário

Todos os comentários são bem vindos: