Um simples muro rodeava o castelo. Tinha havido muralhas, em tempos, destruídas durante a guerra. Ainda se lhes viam as ruínas, aqui e ali, encobertas pela verdura da montanha. Eric não parecia interessado em mandá-las reconstruir. Há muito tempo que as batalhas se travavam em terreno aberto. Já ninguém sitiava castelos.
Os portões não estavam apenas
abertos. Estavam escancarados. Nem um guarda os vigiava. Eric semicerrou os olhos,
como costumava fazer quando algo lhe desagradava. Mas desta vez não estava
irritado.
– O Rurik avisou-me disto.
Os guardas têm-se afastado do castelo. Os criados também. É o miasma que os faz
fugir, prima.
Hildegaard tinha reparado, ao
longo do caminho desde a vila até ali, que cada vez se via menos gente nos
campos. Perto do castelo, tudo estava deserto. Mas não houve oportunidade de
responder. A carruagem já parava no pátio. Eric saiu, com o filho ao colo, sem
nenhuma alegria por estar em casa.
Atrás dele, Hildegaard
desceu o degrau da carruagem e deitou um olhar demorado à residência do
imperador. Esperava mais. O castelo era grande, muito maior do que os castelos
das Terras Verdes. Mas talvez o tivesse imaginado ainda mais majestoso. A
morada da família do Urso que tinha expulsado a sua do trono. Por outro lado,
talvez tudo parecesse pequeno a quem acabava de passar uma temporada no palácio
do duque Alexander. Pequeno e tacanho e decrépito.
Dali do pátio, já não se
viam as farripas de estranha neblina que avistara ao longe. Estava lá. Sem
dúvida que estava lá. Mas tinha-se escondido. Agora tudo parecia envolto numa
névoa pardacenta, como se o próprio ar fosse cinzento. Ninguém diria que não era
um fim de tarde habitual àquela altura do ano, mas todos o sentiam.
Eric pousou o menino no chão
e avançou até ao casal que o recebia à entrada principal. Hildegaard julgou que
eram os criados.
– Quem sois vós? –
perguntou-lhes ele, de sobrolho franzido. – Onde estão os outros?
– Sou o Hankle, irmão da
Nannaka. Esta é a minha mulher, Wilhelmina. – disse o homem. – Os outros estão
na vila. Estamos aqui a fazer-lhes um favor.
O homem olhou em volta, à
estranha que era Hildegaard, aos guardas da escolta, e hesitou em continuar.
Atrapalhado, baixou os olhos. Hildegaard tinha conhecido Nannaka em Dois
Portos. Antiga cozinheira do seu primo. Loira, olhos azuis, muito bonita. Agora
reconhecia as parecenças. Os mesmos olhos, o mesmo cabelo. Mas o irmão,
coitado, não era bonito. Forte e entroncado, era a versão feia da irmã, como
acontecia tantas vezes. Se não soubesse já, Hildegaard teria adivinhado que era
um camponês, pelos modos e a rudeza. Ao lado dele, a mulher magra, de cabelos
castanhos apanhados atrás da nuca, parecia mais velha do que era. Pareciam-no ambos,
embora devessem andar pelos trinta anos. Mas havia uma bondade no rosto dela,
uma doçura nos seus olhos escuros, que Hildegaard não tinha visto a mais
ninguém naquelas partes.
– Um favor? – insistiu Eric,
boquiaberto.
O homem hesitou de novo, mas
acabou por explicar, em voz sumida:
– Os outros pediram-nos que
ficássemos aqui a passar a noite. Não querem dormir no castelo. Por causa dos
barulhos.
– Agora há barulhos?!… –
Eric empalideceu.
– Nada que nos incomode. Mas
os outros têm medo. – o homem encolheu os ombros, como se lhes chamasse tolos.
– Nós não temos medo da
senhora. – disse a mulher, sorrindo a Eric, julgando que dizia algo agradável.
– Uma senhora tão amável e bonita, como a vemos no retrato, não pode querer mal
a ninguém.
Eric empalideceu mais.
Falavam de Micenne, a mãe do menino. Pensavam que era ela o fantasma.
Hildegaard observou o seu primo, cada vez mais transtornado. Se a mesma
suspeita o tivesse assaltado, tinha-a mantido em segredo. Talvez, na dor do
luto, desejasse que fosse Micenne quem ainda permanecia no castelo. Hildegaard
tinha-o visto muitas vezes, como ao perder alguém querido as pessoas preferiam
o seu fantasma à completa ausência.
– Vou à vila chamar os
outros. – ofereceu Hankle, no silêncio do imperador. – Disseram-nos que o
senhor avisa sempre com antecedência quando está para chegar, mas desta vez não
avisou. Não estávamos à espera. Mas aquele homem esteve aqui, o Rurik, e disse
que agora todos somos livres. Por isso eles não pediram permissão.
– Foram-se embora? – Eric
perguntou, um tom de sobressalto na sua voz. Sim, tinha abolido a servidão no
seu castelo, mas subitamente temia ficar sem criados.
– Não se foram embora, meu
senhor. Só não dormem no castelo por causa dos barulhos. Eu vou buscá-los.
– Espera! – Eric tentou
recompor-se. Eram muitos choques ao mesmo tempo. – Trago uma convidada. A minha
prima, a princesa Hildegaard. Temos de instalar-nos. Precisamos de comida e de
lareiras acesas.
O homem e a mulher deixaram
cair o queixo e por longos momentos não tiraram os olhos de Hildegaard. O
imperador tinha uma prima, uma princesa! Ninguém ali sabia. Hildegaard tentou
sorrir, para ser bem-educada. Não lhes estranhava o espanto. Durante anos tinha
feito tudo para que a esquecessem. Mas não contava que Eric a anunciasse como
princesa, e envergonhou-se do seu vestido velho e gasto, de um pano rijo de que
já não se reconhecia a cor. Verde musgo. Tinha sido verde musgo. Que bela
figura de princesa dava de si própria. Mas pelo menos trazia um vestido. Não se
atreveria a usar roupas de homem por ali, as calças e o casaco largo que trazia
na trouxa, um disfarce para viajar sem ser incomodada. Naquelas terras, podia
ser suficiente para ser acusada de bruxaria.
– Eu tenho sopa. – declarou
a sorridente Wilhelmina, e voltou-se para o menino com carinho na voz: – Tens
fome, pequenino? Vem com a Wilhelmina!
Notava-se que a mulher gostava
de crianças, mas Eric tinha razões para a desencorajar:
– O meu filho rejeitou as
amas. Ele não…
O menino apenas hesitou uns
instantes. Olhou a mulher, como se a medisse de alto a baixo, e correu para ela
no seu passinho de bebé. Deixou que lhe desse a mão e entrou com ela pela porta
da cozinha. Eric não disse mais nada, de tão abismado.
– Eu vou já acender as
lareiras. – Hankle assegurou, e entrou também.
Os homens da escolta já
tinham começado a descarregar as bagagens e a recolher os cavalos ao estábulo.
Hildegaard viu que alguém já levava o seu, um belo cavalo ruço, da cor da neve
a derreter entre pedras cinzentas. Eric estendeu-lhe o braço, convidando-a a
entrar. Com um sorriso, Hildegaard subiu a escadaria da entrada e cruzou o
limiar da porta.
E algo não a considerava
bem-vinda. Hildegaard sentiu o frio, como um dedo gelado a perfurar-lhe o
estômago. Custou-lhe reprimir um gemido. Eric não se apercebeu, entretido a
apontar-lhe o caminho para o salão do castelo. Hildegaard respirou fundo e
olhou antes as sombras. Já havia uma lamparina acesa no vestíbulo, mas quase nada
alumiava. A presença, densa à volta deles, amortecia a luz. Pelos Céus, o seu
primo tinha razão. Havia algo ali!
Eric já parecia esquecido, habituado
ao desconforto. Na sala ainda começou a despir a longa capa de inverno, mas
estava tanto frio que mudou de ideias.
– Vamos esperar que o homem
acenda a lareira. – disse a Hildegaard, e inspeccionou o salão fechado há
meses. E notava-se que há meses não via limpeza. Eric suspirou, para não se
enfurecer como noutros tempos, mas virou-se para a sua prima e levantou os
braços. – Vês o que eu tenho de aturar? Já nem sei quem é que trabalha na minha
casa! Chego aqui e encontro dois estranhos. Aqueles imbecis nem perceberam o
que significa a liberdade que lhes ofereci. Devem julgar que podem fazer o que
lhes der na gana! Oh, prima, como tenho falhado com estes mandriões!
– Acalma-te, primo. Não é
caso de vida ou de morte.
Hildegaard sabia que a raiva
do seu primo para com os criados era antiga. Desde infância, quando os tinha
rejeitado a todos. Entregue aos criados por uma mãe que o rejeitara a ele. Mas
já era altura de separar o passado do presente.
Sobre a grande lareira, como
era costume, exibia-se o brasão do Urso, reluzente, negro e cor-de-sangue. E
ainda assim não ofuscava o retrato na parede, bem colocado onde todos o podiam
admirar. Hildegaard aproximou-se, curiosa. Como ela tinha sido bela, Micenne.
Jovem e esguia. Os cabelos loiros entrançados em complicados padrões de
madeixas e veludo azul. Um azul igual ao do vestido, bordado a prata no decote.
O sorriso era doce, os olhos ternos. O artista tinha-a pintado com o menino nos
joelhos, a perfeita imagem da boa mãe. Não seria só uma imagem, Hildegaard
tinha a certeza. Eram dela os cabelos do pequeno Eric, claros como trigo. O
menino não herdara o loiro escuro do seu primo, de uma cor invulgar, como ouro
velho. Uma cor que Hildegaard via no espelho ao pentear-se. Um legado de
família, inconfundível. Tinham outros traços em comum. Diziam que eram tão
parecidos que podiam passar por irmãos. Mas os olhos dele eram de um azul
profundo, como um céu de verão ao anoitecer, e Hildegaard tinha olhos verdes.
Devia-os à sua mãe.
Hildegaard ia comentar,
quando se voltou para o seu primo. Também ele contemplava o retrato. Os olhos cintilavam-lhe
de lágrimas, daquela maneira que choravam todos os que não viam a pessoa amada
há muito tempo. Daquela maneira que lembravam que não a veriam nunca mais.
Comovida, Hildegaard deu-lhe
o braço. Eric estendeu uma mão sobre a dela e por instantes partilharam o
silêncio do luto. Dois lutos, para ele, e como devia ser avassalador.
– Não é ela. – murmurou-lhe
Hildegaard, baixinho. – Tinhas razão, está aqui qualquer coisa, mas não é ela.
Onde ela está, está em paz. Acredita nisto.
Eric levantou a cabeça, o
rosto desconsolado. Talvez tivesse mesmo desejado que fosse ela. O luto fazia
coisas estranhas às pessoas.
O homem entrou no salão, os
braços carregados de lenha. Com os seus modos bruscos, não disse uma palavra
nem olhou para eles. Hildegaard teve pena da mulher na cozinha. Não parecia
merecer um marido tão abrutalhado. Mas talvez ele fosse diferente com ela,
quando estavam sós. Tantas coisas eram diferentes do que pareciam.
Eric limpou as lágrimas,
disfarçadamente, e começou a falar com o homem. Sobre o que se tinha passado na
sua ausência, sobre os outros criados, sobre a vila. O menino tinha ficado na cozinha,
talvez a comer a sopa.
Hildegaard deu uns passos
pela sala e aproximou-se da porta para o corredor. Cada vez mais frio, ao
aproximar-se. Todo o castelo cheirava a frio, se o frio tivesse cheiro.
Hildegaard esfregou os braços para se aquecer e viu o seu bafo no ar. Também
acontecia com as visitas do Outro Lado, às vezes, mas aquilo era diferente. Aquilo,
Hildegaard nunca tinha visto.
Aproveitou que Eric
estivesse entretido com a conversa e saiu para o corredor. Imediatamente, o ar
adensou-se à sua volta. Tinha sido reconhecida, e que era uma ameaça.
Não
tens poder sobre mim. Ordenou. O ser das trevas recolheu-se
à sua passagem como uma cobra sobre si própria.
Continua.
O conto “Miasma” está disponível para download gratuito AQUI.
Sem comentários :
Enviar um comentário
Todos os comentários são bem vindos: