Eu devia ter ido para casa. Hildegaard olhou pela janela da
carruagem. A estrada da vila real era larga e suave às rodas, mantida em
excelentes condições. Árvores antigas ladeavam-na, altas e soberbas, mas em
tempos mais recentes muitas teriam sido sacrificadas às bermas simétricas que
delimitavam o caminho. A paisagem outonal tinha os seus encantos, com os seus
ramos despidos contra o céu cinzento. Nada da floresta bravia e perene a que
Hildegaard chamava lar, mas bonito.
A brisa fria começava a
incomodar e Hildegaard apertou o manto de lã em torno dos ombros. Não devia
estar ali. Apenas por uns dias, tinha dito o seu primo, três meses antes. Mas tanto
tinha acontecido, e a estadia em Dois Portos tinha-se prolongado. Finalmente,
regressavam. Se tivesse tomado a bifurcação na encruzilhada já estaria em casa.
Hildegaard nem sabia que insensatez a levara a mudar de ideias a meio da
viagem. A vila real era perigosa. As pessoas tacanhas e rudes. Ali queimavam-se
bruxas. Devia ter ido para casa.
No banco em frente, Eric e o
menino estavam silenciosos e sisudos. Ambos com a cara de quem ia para um
castigo. O castelo aproximava-se e notava-se-lhes a apreensão nos olhos.
Hildegaard observou-os atentamente. Então o seu primo estava mesmo convencido
de que havia qualquer coisa no castelo. Uma presença, tinha ele dito. Uma
escuridão, um gelo em todos os aposentos mesmo com as lareiras acesas. Um miasma,
tinha-lhe chamado. Como uma nuvem de pestilência que estava lá e não se via.
Eric tinha pegado no seu filho e fugido dali para fora. A mãe do menino tinha
morrido no castelo, de doença súbita e febril. O menino tinha parado de comer. Eric,
era a única explicação, tinha entrado em pânico. O desgosto tinha-lhe afectado
a imaginação. Que havia algo, uma presença.
Mas agora Hildegaard
observava o menino. Também ele inquieto com a aproximação do castelo. Que Eric
acreditasse em fantasmas inventados no luto e na dor, era plausível. Mas o
menino tinha um ano e meio, não tinha idade de acreditar em nada. Talvez ainda
recordasse a mãe? A vaga lembrança de a ter perdido? A paisagem daquela
estrada?
Não havia nada no castelo,
nunca tinha havido. Hildegaard tinha a certeza. Estava ali para garantir ao seu
primo que tinha imaginado coisas. Eric encontrava-se num estado lamentável.
Digno de pena. Desfeito em lágrimas aos pés da campa a chorar uma morte ainda
mais recente. Um segundo amor inesperado e breve. Dois lutos em tão poucos
meses abalariam qualquer um, até ao imperador a quem chamavam o Implacável.
Hildegaard tinha-se preocupado ao vê-lo assim. Vulnerável, sozinho, de cabeça
perdida.
Só por isso tinha mudado de
ideias a meio da viagem e decidido acompanhá-lo a casa. Guiada pelo coração.
Mas agora começava a arrepender-se. Eric estava destroçado, mas era forte e
recuperaria. Não havia luto que o tempo não curasse. E Hildegaard julgava-se
mais sensata do que isso. Não devia estar ali. Queimavam bruxas, ali.
Em volta da carruagem, os
homens da escolta do imperador tinham-se calado também. Ainda no dia anterior se
tinham mostrado tão contentes por voltar a casa, mas agora seguiam em silêncio taciturno,
como se nem soubessem o que os acabrunhava.
E então o menino deslizou do
banco e pôs-se à janela. Em bicos dos pés, as mãozinhas apoiadas na porta, a
cabeça loira a espreitar o caminho em frente, como se algo o sobressaltasse. Às
vezes aquele rapazinho parecia ter o dobro da idade. Outras vezes era tão bebé
ainda.
– Pima Higá! – tinha ele
tentado, vezes sem conta, pronunciar-lhe o nome. Hildegaard ria-se, divertida,
quando o pai o tentava corrigir. Em vão. Por agora, o menino chamava-lhe só
Pima. Hildegaard também nunca lhe chamava Eric, o mesmo nome do pai. Para ela,
aquele menino seria sempre o priminho.
Hildegaard quase sorria à
lembrança, quando viu também. Lá fora, ao correr da estrada, uma neblina. Uma
nuvem, invisível a olhos comuns. Já estavam dentro dela, e era fria e densa.
Arrepiava a pele. Mas ninguém naquela escolta via outra coisa senão nevoeiro.
Eric suspirou, de olhos baixos. Ele também não via. Mas todos a sentiam, à
presença. Ainda nem se avistava o castelo e já ali estava.
E o menino, veria a neblina
como ela era? As crianças eram mais sensíveis. Muitas nasciam com o dom, mas
perdiam-no. Não significava nada.
O pequeno Eric recuou até ao
pai. De repente o seu rosto de bochechas rosadas ameaçava desatar em pranto, como
o bebé que era ainda.
A carruagem virou uma curva
e Hildegaard vislumbrou o castelo. Imponente, cinzento como rocha. E à volta
dele a neblina, espessa, branca, fluida no ar. Como uma cobra, serpenteava em
volta das velhas paredes. Só o topo da antiga torre de vigia lhe escapava nas
alturas. Hildegaard arrepiou-se outra vez e pôs a cabeça de fora para olhar
melhor. Que era aquilo? Mas que raio era aquilo?
– Não chores. – Eric pedia
ao seu filho, sentando-o de volta no banco a seu lado. E olhando-o nos olhos,
continuou, como se lhe adivinhasse os receios: – Vais ser um rapazinho forte e
corajoso. Estamos em casa. O pai está aqui.
Suavemente, Eric
penteava-lhe os cabelos com os dedos, só um pai a tranquilizar o seu filho. O
queixo do menino tremia, ameaçando chorar mas contendo as lágrimas. Valentemente,
queria acreditar na protecção daquele braço forte que o amparava pelos ombros, mas
era como se hesitasse, como se soubesse que o seu pai não via o que ele via.
E
finalmente aqueles olhos azuis, indefesos, voltaram-se para Hildegaard. Tu vês?,
pareceu-lhe ouvir. Não em palavras. Só pensamentos difusos. Mas naquela idade
não significava nada.
Continua.
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